Esc #26 – escoliose

desolationpor Sérgio Tavares

não há nada mais patético, para um homem de cinquenta anos, do que bater uma punheta. talvez apenas se esse homem for casado. quando um homem decide se casar, ele faz um pacto consigo de que não precisará recorrer à autoinduções para obter prazer; é o encerramento dos vícios da adolescência. o casamento é a complicação do gozo, pois se confere à execução de dois o que pode ser bem-feito solitariamente. a questão é que não é um ato compulsório. eis a minha sugestão, portanto: durante a cerimônia, quando o padre discorre sobre as obrigações do matrimônio, o impedimento da punheta deveria estar entre o ser eternamente fiel e o altruísmo. não há nada mais leal. a permissão do sexo é a peculiaridade do casamento. é o que o distingue do namoro e do noivado, com seus estranhamentos e negociações. na verdade, é tão óbvio que sequer está no contrato nupcial. o grande problema é que, só algum tempo depois de assinado, é que se descobre que é um contrato extinto. desculpe-me as comparações medonhas, mas sou um advogado com um pau flácido na palma da mão.

estar casado há vinte e oito anos é um exercício do qual se lembra, mas não o corpo não consegue se entender com a vontade. e isso não é mau. a vida passa a ser mais prosaica, encadeada por tarefas reprisadas, sem a obrigação de conceder ao outro as suas escolhas. a desistência entre duas pessoas é um dos atos mais saudáveis. o terrível é o sexo. tentar competir a necessidade de ejacular contra a falta de inspiração. com o tempo, o sexo deixa de ser um acordo, para ir se tornando um jogo que requer a disposição do oponente, até a anuência atingir o valor de algo exótico, inusitado, uma viagem planejada durante muito tempo para o lugar mais próximo do mundo. às vezes, acontece de se chegar lá. o triste é descobrir que, a cada incursão, nada é o mesmo, que o cenário vai sendo falido por um tipo de fenômeno polar.

então estou sentado na ponta do vaso, com o pau na mão, cogitando tocar uma punheta. é quase meia-noite e, depois de circular o dia inteiro por cartórios e fóruns, não me resta energia para fantasias de alto de nível. espremo o pau, pensando na minha esposa. não o casca que restou, e sim a mulher de outrora: fogosa, que fazia um espetacular boquete e valorizava as preliminares. estou forçando a mente faz alguns minutos, e parece não está dando resultado. eu poderia trazer escondido uma revistinha, mas, se já não me motiva a punheta, estou velho demais para agir clandestinamente. apago tudo. desocupo a mão, a enfio debaixo da bunda e espero até não sentir mais o fluxo do sangue. com os dedos dormentes, volto a envolver o pau e começo a perseguir uma série de mulheres que gostaria de estar comendo agora. tento a rua, a padaria onde tomo café, mas acabo no escritório. alguma advogada, as recepcionistas, a copeira não, porra… a estagiária, sim a estagiária! vinte aninhos, pernas lisas trabalhadas em halteres, a pele dourada em sessões praianas. bunda durinha, seios fartos moldados no tecido fino da blusa social, acusando o frio do ar-condicionado. foda-se, se ela é filha do Humberto! penso na estagiária e começa a funcionar.

esgano a cabeça do pau, me valendo do restante da sensação de dormência, e fricciono pele contra pele, para cima e para baixo. isso, minha filha, senta aqui ao meu lado, que quero lhe mostrar uma coisa, vai, pega! isso, para cima e para baixo. as mãos pequenas e amáveis da estagiária fazem com que, tão logo, ela tenha um dínamo entre os dedos, um vulcão prestes a irromper. estou tão duro, que o pau empina além da circunferência da barriga. continuo. a cena se desenvolve numa ordem aleatória de idas e vindas na minha cabeça. quando parece estar no fim, os fatos voltam para um momento que não existia. fecho os olhos, já não existe o banheiro. sinto os espasmos, a quentura na pélvis. sinto o fluxo e me inclino para ampará-lo com uma tira de papel higiênico, quando um ferrão incandescente me penetra no meio das costas, travando o corpo. feito um manequim desabo no chão, incapaz de me erguer. torto, espero o pau murchar e grito socorro.

escoliose, aponta para as folhas de raio-X presas num painel luminoso. estamos separados por uma mesa de carvalho, grande no peso e na idade. sobre o tampo, a miniatura de uma coluna espinhal traz o logotipo de um laboratório farmacêutico na base. as paredes estão enfeitadas com imagens emolduras de vértebras e diplomas desenhados por letras cursivas douradas. do outro lado, o ortopedista. um sujeito baixo e acima do peso, cavanhaque bem cuidado e cheiro de alfazema. você nunca sentiu dores antes? Continuar lendo

Esc #25: A presença na ausência

escnão é
a falta
nem
a existência

é a
presença
na
ausência.

Larissa Andrioli – “Negação”

Uma das coisas que sempre me chamou mais atenção na ficção literária, sem dúvida, foi a constituição dos personagens. Mais do que a própria trama em si, eles são o que há de mais intrigante e fascinante na literatura. Como agem, como são descritos, se têm nome ou não, como eles se mantêm (ou não) dentro de seu universo particular criado, como interagem entre si, etc. Por outro lado, este interesse está profundamente ligado ao que eu penso do trabalho do autor. Ou seja, ver como o escritor pensa e age para criar os mais inusitados tipos de personas e se elas funcionam bem ou não dentro da história ou da trama. Ultimamente, venho me interessando mais profundamente por um tipo nada usual: a personagem ausente.

Se eu me referir aqui sobre um Nick Carraway poucos devem se lembrar do livro em que ele aparece e é protagonista. Porém, se eu disser sobre Gatsby, tenho certeza que todos vão saber que estou dizendo sobre o romance O grande Gatsby, mesmo sendo o narrador e um dos protagonistas o tal Nick Carraway. Tudo bem que isso se deve ao fato de Gatsby já aparecer logo no título do romance, demonstrando sua importância dentro do mesmo. Mas, se formos pensar, é Nick quem está consco desde o primeiro momento. São as ações dele que são descritas, aparecendo Gatsby apenas já decorrido mais de um terço do livro. Me refiro à presença física, pois as primeiras palavras do narrador já mencionam Gatsby – por isso o personagem é tão importante. O que temos é a construção da personagem ausente, uma boa sacada do Fitzgerald para criar o clima de tensão e suspense em torno do personagem título do livro.

O que constitui, afinal, o personagem ausente? Carol Bensimon elencou essas seis categorias:

a) A personagem ausente é constantemente referida pelas outras personagens.

b) A personagem ausente pode ser evocada através de objetos, como fotografias.

c) A personagem ausente é parte da história, mas não da trama.

d) A personagem ausente não está em cenas, mas está em sumários.

e) A personagem ausente não age, mas sua ausência motiva os outros personagens a agirem.

f) A personagem ausente, portanto, faz parte do conflito da narrativa.

Pensando nisso, e levando ao extremo a ausência-parcial produzida por Fitzgerald, a autora construiu Antônia, protagonista de Sinuca embaixo d’água, morta em um acidente de carro e, portanto, ausente durante toda a trama. O irmão Camilo, o amigo Bernardo o dono do bar frequentado pela jovem, Polaco, são os principais responsáveis por manter Antônia presente durante toda a trama. Sua morte e a maneira como as pessoas ao seu redor lidam com ela é o que move o conflito da trama.

A ausência da personagem não leva, como se pode pensar, ao esvaziamento de sentido das relações. Há durante toda a trama uma produção de sentido dentre tal ausência que resulta em uma produção de presença. O movimento de retirada da personagem e a percepção disso pelos outros, configura o deslocamento de um objeto que, por ser percebido e causar a ausência, é colocado na posição de matéria (ou seja, resulta em presença). O mesmo efeito pode-se notar com a personagem Jingle Jangle do livro/filme/movimento Os famosos e os duendes da morte, de Ismael Caneppele e Esmir Filho. Os personagens vivem tentando se equilibrar no mundo após a morte da protagonista. A não aceitação desse fato e a procura do sentido são as responsáveis pela bela frase (clichê do filme): “Estar perto não é físico”. E a produção de presença atinge um limite que ultrapassa o livro ou o filme, mas chega até nós, seja pelo flickr ou pelo canal do youtube de Jingle Jangle.

Jingle Jangle, a personagem ausente de Os famosos e os duendes da morte

Jingle Jangle, a personagem ausente de Os famosos e os duendes da morte

O que move a constituição dessas tramas não é, portanto, uma presença, mas o sentimento da falta. As personagens, mesmo ausentes, continuam ali, porque fazem parte não da trama, mas da história. E aí vem a parte mais interessante: como fazer com que os outros personagens sejam responsáveis por construir este protagonista? Aí entra meu fascínio, o escritor se coloca num jogo em que deve dividir a autoria de um personagem a outros criados por ele mesmo. Desse modo, a personagem ausente, nada mais é do que um personagem, dentro da própria narrativa. Quase um personagem dentro do personagem. Confiamos não nele, mas nos papéis que deixou para trás, nas fotografias em que ele aparece, no livro que ele sublinhou e na presença que ele tem sobre os outros personagens.

É perceptível que esse meu fascínio não é assim tão simples e vai muito além da passividade de observar um personagem moldando o outro. Nós, leitores, entramos nesse jogo, tomando parte da falta e construindo, também, essa presença na ausência. 

Esc #24 – Cidade, city, cité: imperativos e deslocamentos.

ou “while we sleep I know the streets get rearrenged”.você pode me ver se você quiserpor Danilo Lovisi.

Por viver na cidade, penso muito nela. Talvez até concorde, com ressalvas, com aquela teoria de que o meio influencia o ser, seja fazendo-o mais próximo (do meio) ou um total oposto. Enfim. Sei que percebi, há um tempo, que não estou na cidade, mas ela, sim, está em mim, tanto que a metáfora dela como um corpo é a que mais me agrada (e instiga). A imagem da cidade-corpo seria comparar as ruas com o sistema circulatório (veias, artérias) e respiratório, os órgãos vitais com as construções… Vitais e, bem, as associações são várias e de fácil correlação.

Acontece que por viver na cidade e pensar nela, seja como local ou símbolo, passo a procurar na sua manifestação física (feita, é claro, por nós, mas não tão controlada assim), acabo procurando (e encontrando) cidades invisíveis (alô, Calvino). Acabo percebendo, além disso, o quão ela nos controla (mas não somos nós que a construímos?) e limita os caminhos. Ela dá ordens: pare, olhe, escute e obedeça. E obedecemos. Temos (temos?) que obedecer. A ordem vem pela palavra, mas uma palavra-imagem: dos outdoors às silhuetas luminosas dos semáforos somos sempre direcionados, conduzidos. Mas encontramos fissuras. Válvulas de escape, escafandros que vestimos para conseguir andar (e viver) nesses caminhos concretos (concretos) que, embora abertos, sufocam, afogam.

São nos muros – talvez o símbolo maior de cerceamento – que abrimos as brechas, os cortes. Usamos da própria imagem-palavra para pausar ou redirecionar a condução que não para. É, sim, um outro tipo de ordem, são quase sempre imperativas as imagens-palavra, mas ela (a cidade) é assim. Usamos, então, dos mesmos elementos dela para confundir e trocar os focos, as direções, seja

barra funda, sp

abrindo possibilidades de uso,

bauru, sp

reproduzindo a paisagem para desconstruir a paisagem,

diluindo a ordem

diluindo a ordem,

instigando

instigando,

sao jose do rio preto, sp

se fazendo entender, porra!

fazendo rir (ou não)

fazendo rir (ou não),

criando referências para deslocar os sujeitos

criando referências para deslocar os sujeitos,

ou dando possibilidades.

ou dando possibilidades.

E cantamos, também. Seja reconhecendo que “O banco, o asfalto, a moto, a britadeira/ Fumaça de carro invade a casa inteira” e que “Algum jeito leve você vai ter que dar.

Ou percebendo a efemeridade da urbe, da flexibilidade (até mesmo do concreto) que se constrói para logo mudar, quebrar. Porque “this town’s so strange, they built it to change/ And while we sleep we know the streets get rearranged“.

A reflexão é extensa e perecível. Esses apontamentos já estão se diluindo pelo tempo, pela chuva,  por um balde de cal no muro, um fechar da aba do brownser, um stop no player. As ruas continuam mudando de lugar enquanto dormimos e nós continuamos mudando de ruas enquanto acordados. É a cidade/city/cité.

[P.S.: O crédito de todas as imagens desse post vai para o necessário olheosmuros]

Esc #23 – Não dá mais pra Rubem Fonseca

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por Otávio Campos

Não sei desde quando, muito menos o motivo, mas já faz algum tempo que minhas leituras são quase que exclusivamente de romances brasileiros contemporâneos. Tais narrativas não me incomodam, muito pelo contrário, me dão o lacere e o docere fundamentais da literatura – até certo ponto. Me incomoda sim é a literatura que vem sendo catalogada como contemporânea, a suposta massa uniforme feita de crachá para simplificar a designação das produções literárias brasileiras das últimas décadas. Apesar de acreditar não ser apenas isto, é inegável a enorme quantidade de livros na minha estante que servem para a crença de que este grupo se caracteriza pela narrativa urbana, violenta, com destaque para personagens marginais e situações incômodas.

É bem perigoso afirmar qualquer coisa em literatura sem os conhecimentos adequados, mas creio que tal movimento se inicia justamente como uma ruptura do que vinha sido produzido no país desde a geração modernista de 30, a prosa regionalista (que inegavelmente colocou o Brasil em holofotes internacionais), preocupada com a denúncia social e o apontamento das mazelas da parcela brasileira encoberta pelo eixo Sudeste. Chega um tempo em que a situação se inverte e a literatura que vem sendo produzida não reflete realmente a realidade brasileira (como se isso fosse o mais importante) e vem Rubem Fonseca com a famosa frase “Não dá mais para Diadorim” e deságua todo esse movimento que conhecemos hoje por literatura brasileira contemporânea.

Vivemos, desde então, nesse estado de negação do sertão, que se mostrou tão forte que foi capaz de abafar o Movimento Armorial, que tinha por princípios justamente sair do marasmo que havia se tornado a prosa regionalista. Até aí tudo bem, mas creio que o problema é deixar a literatura brasileira  produzida ultimamente se resigne e passe a se tornar essa coisa homogênea, pré-feita, cinza e inabalável. O comodismo é o que mata a arte. Chega um momento em que é nossa hora de dizer não, não dá mais para Rubem Fonseca, ou Patrícia Melo, ou Ana Paula Maia (que fique bem claro que não tenho nada contra esses autores, visto que sou leitor voraz dos mesmos). E não, não mesmo, a literatura contemporânea brasileira não é só isso. O que é então?

Creio que essa dúvida e a vontade de mudar e encontrar seu lugar (não necessariamente visando tal finalidade) não é algo que passa apenas na minha cabeça de leitor, mas também de muita gente boa que vem sendo publicada ultimamente e que ainda não é lida com tanto fervor, justamente pela “maldição” urbana que nos foi jogada. Existe um tema que se mostrou muito presente na minha vida de consumidor de arte neste ano: a estrada, e acredito que esteja aí a gênese de um movimento que vem se expandindo e dando novas feições ao que vem sendo produzido. Agora seria muito pertinente citar o On the Road, mas sinto muito em dizer que de maneira alguma este livro (como também o recente filme) cabe dentro do assunto. Falo da literatura exclusivamente brasileira (isso existe?), apesar de estar ciente das influências de Kerouac nessas obras.

O primeiro livro que li e que me fez abrir os olhos para estas “novas questões”, sem dúvida foi Lavoura arcaica que, apesar de não

A estrada em Galiléia, de Ronaldo Correia de Brito

A estrada em Galiléia, de Ronaldo Correia de Brito

estar muito presente, a estrada é a questão central – o deslocamento de André rumo ao desconhecido, à libertação, e sua volta à casa. Em seguida, veio Galiléia, do Ronaldo Correia de Brito, no qual a estrada é quase que o personagem principal do livro, palco de quase todas as ações e reações dos personagens no decorrer da narrativa. O movimento que Brito faz com sua obra deixa explícita essa relação de fuga da literatura contemporânea uniforme e a busca pelo “dentro”. Os personagens saem do caos da metrópole rumo à fazenda Galiléia, no sertão baiano. Como se fugissem de Rubem Fonseca e se aproximassem de Guimarães Rosa – não tão assim, não tão explícito, talvez o movimento não seja esse, mas por questões “didáticas” vamos acreditar que é assim que funciona.

Resquício da modernidade, a estrada se configura como esse não-lugar, sem laços, críticas, moralidade, um espaço de passagem. Nela se perdem as marcas do tempo e os olhares se multiplicam, se perdem, aumentam e diminuem. Nunca li o livro de Kerouac, apesar de o achar necessário, mas meu fascínio por esse tema começou a ser latente quando ouvi o disco Caravana Sereia Bloom¸ que a Céu lançou esse ano, no qual todas as músicas montam um Road disco, com referências ao nordeste brasileiro e as fronteiras da América Latina. Foi um casamento perfeito – de um lado minha atenção voltada para Galiléia junto da estética de músicas como “Retrovisor”.

Acho que foi a partir daí que eu comecei a pensar que isso é literatura, isso é literatura contemporânea, isso é literatura contemporânea brasileira (?), sem fronteiras, sem estigmas, de um jeito honesto sem cair no lugar comum. Sem cair em lugar algum, talvez, como que flanando pelo chão de asfalto, em um deslocamento que não necessariamente significa uma procura.

Daniel Galera morou por um tempo na pequena Garopaba para escrever Barba ensopada de sangue

Daniel Galera morou por um tempo na pequena Garopaba para escrever Barba ensopada de sangue

Agora aberta a questão posso citar inúmeros livros que me vêm à cabeça que começam ou fundamentam-se com o deslocamento para o interior, tanto dos personagens do livro ou até mesmo dos autores. Cito dois que ainda não li, mas estão na minha lista de próximas leituras. O primeiro é Os malaquias, da nova queridinha da Companhia das Letras, Andrea del Fuego. Vencedor da sétima edição do Prémio Literário José Saramago, o romance se desenvolve na pequena e pacata Serra Morena. As questões aqui não envolvem urbanicidade, violência, mas, pelo que me parece, possuem um caráter quase lírico de trabalho de linguagem e flertam com o realismo mágico. Outro exemplo a ser citado é o recente Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera, no qual o autor esteve envolvido por quatro anos, chegando até mesmo a “fugir” do centro metropolitano no qual estava encerrado e viver durante o período de escrita, na cidadezinha praiana Garopaba.

É, não dá, não dá mesmo para enclausurar a produção brasileira contemporânea em uma caixinha etiquetada como: questões urbanas, o que muito me excita. Creio que o lugar da literatura é justamente esse: o não, a estrada, o asfalto (metafóricos, ou não). Mais do que encontrar um lugar, os escritores e também seus leitores devem não permitirem-se cair no lugar cômodo, no seguro. O caminho que faz a literatura recente respirar é justamente o deslocamento, possibilitando tanto uma aproximação com Diadorim quanto com Maiquel (O matador), ou todas as outras coisas que existem entre eles e que também necessitam de um lugar.

Esc #22 – Os ritmos do corpo e do espírito

Uma aproximação à música de Cheikn Lô

CheikhLo-QA-Interview

por Prisca Agustoni*

É com grande felicidade que, no sofrido e demorado percurso de reconhecimento recíproco e de trocas simbólicas entre o continente africano e o continente americano, decorrente de séculos de colonização e escravidão, assistimos ao surgimento de figuras como o músico, filho de senegaleses, porém nascido em Burkina Faso, Cheikh N’Digël Lô, mais conhecido como Cheikh Lô. Um músico que – por ter crescido em uma comunidade culturalmente híbrida e dominando vários idiomas, entre os quais o wolof, o bambara e o francês –, incorpora na sua atividade criativa um vasto painel de influências e de ritmos. Um músico que, por fim, faz do trânsito entre as diferentes culturas que o habitam (musicalmente e geneticamente) desde a infância – ou que ele adquiriu ao longo dos anos – uma maneira de multiplicar os olhares sobre aquilo que ele considera o cerne da sua vida: a essencial interação entre a fé, a vida e a música.

Essa interação se torna evidente ao repararmos no trabalho de pesquisa estética elaborado pelo artista, cuja marca fundamental presente na sua música é a de uma convergência de ritmos e influências plurais a serviço de uma mensagem de profundo cunho espiritual, e aqui entendo a mensagem não apenas na sua acepção mais comum, como “letra” – eu não entendo o bambara ou o wolof, o que não me impediu de perceber o desprender-se de um canto e de uma atmosfera atravessados pela fé.

A fina tessitura entre musicalidades como o souk zairense, o m’balax senegalês, o afro-beat do nigeriano Fela Kuti, a música bambara tradicional do Mali, e ritmos como o flamenco, o reggae, o soul, a guajira cubana e, mais recentemente, a “harmonia da percussão brasileira”[1], faz dos trabalhos de Cheikh Lô um originalíssimo palimpsesto em que múltiplos referentes e signos culturais se sobrepõem, representações em que o ser africano ou afro-descendente implica muito mais na marca registrada no espírito de uma população que sofreu e resistiu, do que nas marcas visíveis na pele. Isto está registrado na homenagem que o músico presta ao seu continente, no último CD Lamp Fall: “O tema do álbum é a África, minha África. Trata-se de um apelo contra a guerra e a pobreza. Mas também em favor do amor, da religião e da espiritualidade”.

Lamp Fall - 2005

Lamp Fall – 2005

Outros elementos presentes na música de Cheikh Lô, que dizem respeito a um espaço simbólico de imaginação e de representação, possibilitam a existência de uma zona “cosmopolita” e fronteiriça que põe em diálogo signos contemporâneos originados em contextos que mantêm ligações com o manancial rítmico do continente africano, o seu embrião, embora tenham se tornado realidades independentes e totalmente “outras”, capazes de interferir nesse rico manancial africano e de constituírem uma fonte de inspiração “às avessas”. É o caso do son cubano, que está na raiz do Bolero Zairense, ritmo que Cheikh identifica como um dos mais importantes na sua formação de músico: “escutava todo tipo de música e em particular o Bolero Zairense, que encontra suas raízes no Son Cubano. A música cubana estava em alta na África ocidental durante os anos cinqüenta, quando meus irmãos maiores começaram a dançar com as namoradas na música de El Pancho Bravo, e eu podia mimar exatamente as letras em espanhol, mas não podia lhe dizer o que significavam”[2].

O caminho que leva esse músico senegalês que idolatra o flautista cubano Ricardo Egües, fundador da Orquestra Aragón, a fazer hoje uma música que integra pitadas de swing à James Brown e a aproximar matrizes africanas tradicionais com ousados arranjos funky, sem nunca perder a marca característica de profunda espiritualidade que atravessa toda sua musica, aliada a mensagens vinculadas ao contexto social africano, tem trilhas próprias, demoradas, silenciosas, trilhas que o levaram a transcorrer períodos no Mali, no Senegal, onde reside atualmente, em Paris, em Londres, em Cuba e, mais recentemente, em Salvador da Bahia, para gravar, junto com os percussionistas do Ilê Aiyê, segmentos do seu álbum mais recente, Lamp Fall. Álbum este que – após a estréia espetacular de Cheikh Lô em 1995 com Né la thiass (produzido por Youssou N’Dour) – em minha opinião, a obra-prima do músico – e após a esperada confirmação internacional obtida em 1999 com Bambay Gueej, apresenta a calma e a maturidade de um artista que chega ao ápice de uma carreira fiel aos seus princípios, capaz de investigar e de se surpreender com outros universos sonoros, se encantar com eles e, o que é fundamental, degluti-los e devolvê-los, disfarçados, no interior da sua música, revelando uma atitude estética muito cara a Oswald de Andrade.

Bombay Gueej - 1999

Bombay Gueej – 1999

O álbum Lamp Fall apresenta uma pluralidade de ritmos que se entrelaçam à maneira das roupas em patchwork que o próprio músico veste, ou dos dreadlocks que contornam seu rosto, como símbolos da fé que ele professa na fraternidade religiosa islâmica Baye Fall. Desta maneira, o ritmo passa a ser considerado como um circuito comunicativo camaleônico, um solo fértil e compartilhado por todos aqueles que nele fazem transitar signos da diáspora negra. Da mesma forma, se a letra continua profundamente vinculada a problemáticas “locais” e a serviço da comunidade – como a fome, a guerra, a religião -, os arranjos, inesperados, tornam-se instrumentos de ruptura, nos quais é possível gravar novos códigos, novos deslocamentos, não relacionados unicamente ao universo simbólico da origem.

Esses deslocamentos provocam zonas de estranhamento e de encantamento, e formam aquilo que o teórico cubano Benítez-Rojo chamou, no que tange à literatura diaspórica, de “máquina especializada para produzir bifurcações e paradoxos” (1998, p.38), esplendorosos paradoxos, acrescento eu, de polirritmia. De fato, parece-me evidente que a polirritmia presente nos álbuns de Cheikh Lô representa a ponte que da África nos traz à América, passando de raspão pela Europa, e permite – por causa desse trânsito – que a África freqüente e se sinta finalmente à vontade em países como Brasil e Cuba.

A música de Cheikh Lô nos prova, uma vez mais, que a África é aquele patchwork de identidades e temporalidades sobrepostas, que fazem da raiz “afro” um elemento extremamente escorregadio – como qualquer conceito que diz respeito à identidade – por ser detentor de muitos rostos e ritmos, tanto nos próprios países africanos, como na sociedade de um Brasil que, mais do que nunca, está à procura da(s) sua(s) identidade(s) provisória(s).

Cheikn Lô

Cheikn Lô

[1] Ver no encarte do mais recente CD, “Lamp Fall”, A World Circuit Production, 2005.

[2] Ver no encarte do CD Bambay Gueej, World Circuit, 1999. A tradução é nossa.

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https://i0.wp.com/www.cronopios.com.br/site/images/iex/junho2011/prisca1.jpg*Prisca Agustoni
 nasceu em Lugano, na Suíça italiana, onde cresceu. Morou em Genebra por muitos anos, para cursar a Faculdade de Letras e Filosofia. Na cidade de Calvino fez teatro, se abriu para o mundo, publicou seus primeiros textos e fincou raízes. Outras raizes ela transplantou para o Brasil, em Juiz de Fora, onde mora desde 2002. Aqui ela trabalha como tradutora, além de se dedicar à escrita poética e narrativa.

– Confira as outras Escolioses de Novembro:

Esc #21 – O amor como objeto de consumo

Reflexões sobre Amor e Consumo em Sleeping Beauty de Julia Leigh

por Danilo Lovisi

A realidade contemporânea, abarrotada de informações, inovações, e promotora da coisificação do homem e do seu entorno, produz no interior deste ser uma inquietação sem origem evidente. E essa inquietação é, talvez, uma necessidade de preenchimento do vazio construído nessa realidade do excesso, do acúmulo, do desperdício. O sujeito contemporâneo, inserido no meio urbano e numa sociedade capitalista, tem, em sua vida, a necessidade de preencher este vazio, e o faz consumindo algo. Todavia, este consumo não está estritamente relacionado à compra e venda de produtos no mercado capitalista, pois há aqui um consumo da necessidade, que irá prover – ou não – o preenchimento, mesmo que efêmero, deste vazio interior; o preenchimento desta vida escassa. Mas que produtos seriam estes capazes de preencher um vazio, uma necessidade existencial?

Para responder esta pergunta, é interessante trazer à tona as relações do tema trabalhado com o filme Sleeping Beauty (Beleza Adormecida, no Brasil). A história, resumidamente, se consiste na vida de uma bela jovem universitária que, vista numa situação de grande necessidade financeira, passa a trabalhar para uma misteriosa agência, que contrata garotas para satisfazerem desejos velados de clientes de altas classes sociais. À princípio, visto apenas por essa perspectiva superficial, o filme não parece desenvolver questões mais subjetivas e profundas, o que é um engano, pois, no decorrer do enredo, a personagem principal (Lucy), evoluindo de posto, passa a atuar numa função mais restrita, peculiar e intrigante: ela deve tomar um chá especial, que irá fazê-la entrar em sono profundo por algumas horas. Neste interim, os clientes estarão livres para fazer o que desejarem com a jovem, havendo apenas uma regra: não pode existir penetração. E há um cliente que, ao utilizar este serviço, apenas deita na cama para dormir algumas horas ao lado de Lucy. E é aqui que pode se estabelecer uma relação com um conceito mais diferenciado de consumo, pois não há ali uma satisfação carnal: gasta-se e consome-se o momento, não o corpo.

Mas para chegar até este posto, a jovem trabalhou em outras áreas da empresa, como quando atuou servindo jantares, em companhia de várias outras garotas, para senhores da alta sociedade. Porém não se tratava de um serviço comum, visto que todas as garotas trabalhavam seminuas, com vestimentas fora do padrão, e algumas tinham que ficar em posições peculiares, servindo de objetos de voyeurismo. Ora, o preenchimento do vazio inquietante destes senhores provém, então, do estranho, do bizarro, e não do já conhecido e também já escasso – como suas vidas – sexo.

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Esc #20 – Entre quatro paredes

Um papo sobre quartos

 

por Otávio Campos

Acredito que uma das partes mais difíceis em uma mudança é “desmontar” o quarto e erguê-lo de novo em outro ambiente. Como estou às vésperas de uma mudança, comecei a pensar hoje no que fazer com as coisas do meu quarto. Ter que encaixotar os milhares de livros, separar as fotos, arrumar as roupas e, claro, deixar para trás o que já não é mais útil. Pensando nisso, passei a observar mais atentamente o meu quarto e percebi que, de alguma forma, as coisas que eu vim jogando nele durante esses dois anos que estou aqui, se encaixam e possuem uma harmonia engraçada – como um prato verde sobre minha caixa da Tropicália, na frente do meu mural de fotos, que, por sua vez, fica do lado de uma caixa de sapatos, na qual está o LP do Chico sobre e serve de apoio para alguns livros, tudo isso em cima da minha escrivaninha. O resultado é uma bagunça um painel das minhas influências, que se estende pelos demais cantos do pequeno cômodo.  Agora eu já não sei se as coisas que faço e escrevo são reflexo do meu quarto ou se são refletidas na concepção deste.

Nessa perspectiva, passei a analisar, a caráter de curiosidade apenas, os quartos de alguns escritores famosos e vi que o espaço coincidia na maioria das vezes com as obras literárias dos autores. Vejamos só: Virginia Woolf possuía uma quarto que mesclava elementos de “classe”, como uma lareira, com alguns tantos mais “despojados”. Além disso, é cheio de detalhes, com vários livros que a autora encapou com papéis coloridos.

Algumas pessoas afirmam que o quarto de Alexander Masters reflete seu processo de produção. O autor acordava e já começava a escrever. O crocodilo sobre sua cama, além de ser um talismã, serviu para ilustrar a capa de seu livro Stuart: uma vida revista.

O quarto de Henry David Thoreau reflete a mesma humildade simplicidade presentes em seu livro Walden.

Em contraponto, temos esse quarto luxoso, com um vermelho quente e tons escuros, que só podia pertencer a Victor Hugo, claramente influenciado pelo Romantismo.

Por último, tem esse quarto simples que pede um aconchego, do Mário Quintana.

Enquanto procurava por essas coisas, encontrei o site Writers’ House, que mostra não apenas o quarto, mas a casa toda de diversos escritores, desde Agatha Christie a Fernando Pessoa.

Bom, a dúvida continua a mesma: o quarto influencia na escrita ou a escrita influencia no quarto? Creio que na segunda começo a colocar as minhas coisas nas caixas e desmontar esse meu retrato que veio se formando nesses anos. A forma que ele vai tomar na minha casa nova pode ser bem parecida com essa ou destoar totalmente. Não sei, mas acho que observando a concepção do meu “lar” desde o início posso encontrar essa resposta. Quem sabe, ficar dormindo com um olho aberto e perceber as coisas, magicamente, se encaixando e reconstruindo o painel.

Esc #19 – Pequena carta geográfica

por Frederico Spada Silva

Pode haver
um ponto de partida.
Um epicentro de onde
soe
alguma palavra exata. (…)

(Ronald Polito, “Encruzilhada”)

Há geografias que se pisam e outras que se sentem, uma geografia afetiva que se escreve sobre a própria pele, cartografia de desejos e descobertas, caligrafia de memórias e sensações – acessíveis pelo tato, pelos poros, pelo olho armado. O atlas anatômico não contempla o inexato arquivo da vivência; a geometria espacial não encontra o ponto alheio a planos e equações; os guias ilustrados não são diferentes de catálogos museológicos. A memória, enfim, é texto que se escreve sobre linhas que se vão apagando à medida que o novo ocupa seus vazios.

Tal qual o corpo, a cidade também (se) escreve, e (se) inscreve em nós. Andar por suas ruas, quer de maneira apressada, como o comum dos dias há muito nos obriga, quer de maneira irresponsável, desobrigação contemplativa hoje tão rara, aguça-nos os olhares e a memória, revela-nos surpresas, suspiros e dissabores. O ponto de partida, a página em que se perde, a se apagar, a caligrafia da memória, pode ser uma rua da infância, passeios familiares ou um local de trabalho: seja como for, é também na palavra, e não apenas em imagens e outras reminiscências, que se inaugura, pois que a geografia a que nos referimos, mais do que física e sensorial, é também nomeadora.

As ruas de Juiz de Fora, assim, desenham também contornos outros, distintos destes que ora enfrentamos, avessos a suas identidades; traçados que nos guiam a outros destinos, a que só chegamos por uma memória simultaneamente afetiva e literária.

Avistemos o Morro do Imperador, “pompeando em aleias de bambus!/ Vertiginando caminhos!” e, “longe, Mariano Procópio das paralelas!/ Reticenciando em dormentes!/ E o Parque do Museu/ tropicalíssimo!”. E sigamos ainda com Austen Amaro, deixando este “bairro proletário” rumo à “Rua do Espírito Santo!/ rampando certa/ retilínea!/ de vivendas florindo entre grades boas de se ver!”. E a “Rua linda de Santo Antônio!/ com árvores redondas! De brinquedo! (…)// Casas adolescendo na indeterminação mesclada dos estilos!”. “E os teus poetas, Juiz de Fora?! (…)/ Cantando a poesia que impulsiona o teu pulsar!/ Cantando o latejar metalizado/ das tuas polias estalantes!/ Cantores/ da tua verdade cotidiana!”

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#Esc 18 – Sobre sede entre montanhas

ou Pobre daqueles que a lagrima não tocou a face quando a arte toca o coração

por  Tassiana Frank  

Essa foi a primeira coisa que me veio à cabeça depois de ver um céu repleto de nuvens inconstantes entre morros e montanhas, entre aqueles que nunca viram o mar e esses todos que são filhos da terra, dos vales e que a força resume em si toda a brasilidade de raiz, que todos procuram. Essa originalidade que vem do verdadeiro pedaço do Brasil, que só se conhece conhecendo Minas Gerais. Entre as ladeiras da vida, encontra-se o carioca que escolheu ser o mais legítimo dos mineiros e que como um peixe que vive imerso em água e tem sede. Esse que vive em música, tem sede de novos acordes: Milton Nascimento.

Para quem quer se soltar invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento o amor e sei a dor de encontrar
Eu queria ser feliz
Invento o mar

Invento em mim o sonhador
Para quem quer me seguir eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar (Cais)

Esse que fará 70 anos sexta-feira dia 26 de outubro, possui uma da vozes mais bonitas que esse mundo já ouviu. E, apesar de ter a errônea concepção de que Pietá era meu dvd favorito de Bituca, descobri A Sede do Peixe – um especial exibido na Multishow e na HBO que virou dvd. Esse que possui participações como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Lô Borges, Clube da Esquina, Nana Caymmi, Alaíde Costa, Carlinhos Brown e tantos outros, é tradução de emoção-paz. Um acalento que conforta a alma, como inverno compartilhado com quem se ama, chocolate quente e cobertor.

A fotografia muito bem dirigida, o clima acolhedor proporcionado pela posição das câmeras, a simplicidade de quem com muita sabedoria divaga sobre o viver. Essa coluna foi escrita como apologia à Sede do Peixe, porque esse sentimento não se traduz, se sente em vozes e acordes, imagens e percepções.

Para o que não tem mais razão
A calma do louco ensinou
A dizer nada

Para o que não tem mais nada
A calma do louco ensinou
A dizer razão (Sede do Peixe)

Esc #17 – [Maria Amélia – Bibliotecária]

Querida Maria Amélia,

Ainda não entendo como você conseguia manter sua cara de estante vazia enquanto ficava sentada na biblioteca do colégio. O frame ainda permanece na memória: você, inerte, à frente uma plaqueta – “Maria Amélia – Bibliotecária” – e, atrás, o porta-retrato com a foto em sépia que dava nome à escola: Cosette de Alencar. E insisto: havia mais vazio no seu rosto do que nas salas de aula em véspera de feriado prolongado. Não entendo.

O trabalho, pra você, não devia ser de fato muito gratificante: ficar oito horas sentada, todo dia, tendo que manter sua cara de estante (vazia), e ainda por cima precisar levantar da cadeira pra buscar o caderno de registros, quando alguma criança decidia levar um dos livros pra casa. Complicado, Maria. Complicado. E você não lia, nem pra passar fazer passar o tempo. Milhares de livros te sufocando (você resmungava) e você não lia nenhum.

Íamos pouco à biblioteca, é verdade. Primeiro porque não nos deixavam ir sozinhos (ler é de fato muito perigoso, até hoje) e só nos mandavam pra lá quando precisávamos ficar de castigo, ou quando algum professor faltava, ou nas aulas de leitura – que, te falo: de leitura nada tinham, porque ficávamos (eu e alguns) tão absortos com os livros que só conseguíamos folhear, ansiosos, ofegantes, infantis.

E hoje te digo, Maria. Dez anos depois. Hoje te digo porque os livros sumiam tanto: nós roubávamos. Isso mesmo. Roubávamos vários. Muitos. Deixávamos as estantes vazias como sua cara. Contos Grimm? Tão aqui em casa. Coleção Vaga-lume? Metade aqui e metade com o Felipe. Sem Família, do Hector Malot? Mudou minha vida, mas só depois de passar uma boa temporada na minha estante. E vários outros, Maria. Vários. E rodam por aí até hoje, mas não são mais sugados pelo seu vazio que sufoca (concluo).

Mas olha, lembrei de uma coisa – e fica calma porque prometo não contar pra ninguém -: um dia, quando saí da aula da tia Carmen pra beber água, passei pela biblioteca (não era caminho, mas a aula dela era chatísssima) e te vi, Maria, te vi lendo um livro. E pode ter sido minha fome (era quase a hora do intervalo), pode ter sido o óculos que eu não sabia que precisava usar, mas eu vi outra coisa, Maria, eu te vi sorrindo. Mas foi um riso duro, é. Um riso, assim, um riso sépia, feito a foto da Cosette atrás de você. Mas foi um riso, Maria. Foi um riso.

Daí eu penso: vai ver que sua frieza, sua inércia de cara, era tudo medo da gente; era tudo porque você não sabia o que fazer com aquilo tudo envolta (que sufoca, sim, a literatura ainda sufoca a gente), e principalmente: não sabia o que fazer com nossos olhos nada vazios, nada inertes, nada nada. Era seu desespero que te paralizava. Mas não se preocupe: o que você não fez nós fizemos: pegamos (e não devolvemos) o máximo que pudíamos, e fizemos rodar por aí. Preenchemos os vazios. E fizemos Marias, Amélias, Cosettes e Alencares deixarem sair um riso que, mesmo frouxo, mesmo sépia, mesmo duro, mesmo falso, foi um riso. Um riso a mais.

Assinado,

Danilo Lovisi