por Juliana Gervason*
É verdade que um livro novo promete uma relação, digamos, mais íntima. É certo, inclusive, que possibilita ao leitor mais voraz de contato, que leve o livro para a cama, que abrace o livro e que, principalmente, cheire o livro sem que lhe tome um sentimento de aversão. Mas um livro novo é carente de história. E não me refiro aqui, é óbvio, à história ficcional que suas páginas prometem. Refiro-me sobretudo à história das histórias de seus leitores antigos.
Que triste é um livro de sebo semi-novo. Não deveria chamar-se semi-novo. Um livro semi-novo é na verdade um livro rejeitado… O que fez seu leitor nunca se interessar por aquela obra? Quais motivos o levaram a se desfazer daquela edição? Por que ele nunca folheou suas páginas, rabiscou suas linhas, possuiu suas folhas? Por que não há marcas de café, dobras de páginas ou objetos perdidos ali dentro?
Os objetos perdidos de um livro de sebo falam-me mais de seu leitor do que meia hora de conversa… O que ele usa para marcar sua leitura? Dobra a orelha do livro, assassinando-o? Utiliza-se de panfletos de rua, cartões postais, marcadores personalizados? E o que fez o leitor esquecer de retirar-se do livro antes de vender?
Mas das marcas de um leitor o que mais me intriga é encontrar dedicatórias nas primeiras páginas. “De João para Maria, com amor…”. o amor acabou-se? O livro registrava um momento que seu dono queria esquecer? Maria não ama mais João? O livro não foi prova de amor/amizade suficiente para justificar sua paragem nas estantes de seu ex dono? Levar o livro para um sebo foi um ato de revolta e desapego que representava, na verdade, a catarse que Maria precisou fazer para esquecer João?
E João se importaria se eu me tornasse a nova dona daquele livro e, indiretamente, daquele amor?
Fosse eu dona de um sebo, pediria para cada cliente que fosse se desfazer de um livro, que escrevesse uma carta para o novo dono. “Desfaço-me deste livro porque…”. E pediria, inclusive, que o ex dono disponibilizasse um endereço para correspondência. Ao novo dono exigiria que enviasse uma carta, em resposta, para o dono anterior. “Comprei seu livro porque…”. Quantas relações literárias criar-se-iam aqui? Humberto vendeu Crime e Castigo porque não gostou da leitura. Isabela compra o livro, lê e envia uma carta a Humberto, contando o quanto gostou do livro e destacando dele o que achou salutar. Quem sabe Isabela não fosse capaz de fazer Humberto reencontrar Dostoiévski? Quem sabe Dostoiévski não fizesse Humberto encontrar Isabela?
Sim… sofro de quimeras literárias… E acredito que os livros usados são seres que devem ser respeitados, amados e acalentados por todas as histórias que carregam: as minhas, as suas, as de João, as de Maria, as de Isabela e as de Humberto também…
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*Juliana Gervason é professora de literatura e doutora em literatura. É amante de livros novos, mas tem uma relação avassaladora com livros usados. Chega a pedir desculpas para os ex donos, quando precisa fazer no livro recém adquirido, algum tipo de marcação. Respeita sobretudo as dedicatórias, apropriando-se clandestinamente das felicidades que não são dela. Gosta da história por trás das histórias dos livros, mas não abre mão de restaurar aqueles cujas marcas temporais insistem em destruir. Para isso, desenvolveu um método infalível de limpeza para recuperar livros usados extremamente velhos…
– Confira as outras colunas da Escoliose de Setembro:
- Esc #13 – O julgamento de Capitu, por Otávio Campos.
- Esc #14 – 18 seconds before sunrise, por Danilo Lovisi.