Todo amor será mastigado (o camelo, o leão, a criança e seus etecéteras)

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Há muita gente que ainda acredita que os livros físicos têm o potencial de deixar de existir, pelo advento da internet e da cultura digital. Possivelmente entram na mesma linha daqueles que acreditavam no fim do cinema com o surgimento da televisão. Entretanto, o que temos observado hoje é um aumento considerável no número de publicações impressas no Brasil, colocadas no mercado (ou em algum lugar próximo a isso) por pequenas editoras que vêm se destacando no cenário nacional, possivelmente pelas novas possibilidades de edição que existem justamente pelos novos meios técnicos, digitais, como as impressões sob demanda. Este é um cenário fácil de ser observado se notarmos, por exemplo, o número de editoras que concorreram na categoria “Poesia” no último Prêmio Oceanos (antigo Portugal Telecom), que quase se esbarra no número de obras inscritas para tal categoria. Os dados apontam para uma discussão que não é nova, mas que ainda faz sentido ser citada: o número de publicações vem se tornando maior que o número de leitores. Claro que ainda existem leitores, e alguns deles (como eu) busca ter acesso ao maior número possível de livros que são publicados, o que pode resultar num enorme estoque de obras, que são diversas mas, na maioria das vezes, possuem o mesmo tom de qualidade questionável – o que é bem óbvio, já que a demanda aumenta e o tempo para preocupações estéticas, formais e comprometimento com o intelecto do leitor, consequentemente, tende a diminuir. Liubliblablá: mastigações de um camelo, de André Monteiro e Luiz Fernando Medeiros (Bartlebee, 2015) é um livro que, de certo modo, destoa e se destaca neste cenário das publicações por editoras independentes.

Apresentado, na ficha catalográfica, como “Ensaio brasileiro”, o livro não se prende (e não se pretende a isso) a uma classificação fixa, principalmente se pensarmos que André e Luiz Fernando já são conhecidos pelas suas carreiras como poetas, o que nos leva a encontrar um lirismo pulsante (às vezes em versos, por vezes em prosa) perpassando por toda essa obra que se autointitula ensaística:

o camelo aqui mastiga e fala. fala e mastiga.
não mais suporta. não mais se ajoelha.

O camelo aqui vem da imagem das três metamorfoses do espírito, apresentada por Nietzsche em Assim falou Zaratustra: “Vou dizer-vos as três metamorfoses do espírito: como o espírito se muda em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança”. Elemento central do livro, o animal equivaleria à ideia de sua corcunda, como se a corcunda fosse um carregamento de todas as informações e imposições pautadas pela cultura ocidental. Como a figura de um academicista, preso em seu gabinete, cercado de livros, cuja exclusiva ação é carregar o máximo possível das informações dos livros, criando sobre ele uma bagagem monstruosa, uma corcunda enorme e nada digerida. O que os autores apresentam, no entanto, é uma imagem modificada do animal nietzschiano: o camelo aqui mastiga e fala. Enquanto mastiga é também o leão, que critica, que devora, com sua arcada selvagem, o que designa a cultura:

lei de mercado
na maioria dos casos, terminamos
como velhos frustrados franciscanos
querendo dar e receber,
pelo mais, não damos.
pelo menos, recebemos.
um dia, nos daremos para o gasto.

É também a criança, que se desliga (depois de tudo digerido) e começa de novo, do zero, da nova organização possível agora pela visão crítica e pela falta de repressão. Vem justamente daí o título do livro: liubliblablá, quase um balbucio, uma palavra que por enquanto não se enquadra em nenhum sistema simbólico e representativo, como se uma tentativa da criança de entrar no reino político da linguagem, mas desviando-se para o novo, o que brilha. Liubliblablá, gugu-dadá, Dadá.

a baba será tudo no amor
liublablá
liubliblablá

Mastigar pode ser, antes de tudo, tecer – trançar a tecitura, criar o tecido, o texto. O camelo mastiga o texto, isto que Roland Barthes aponta em “A morte do autor” como “um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura”. No livro ajuntam-se, mastiga-se e coabitam presenças como as de Clementina de Jesus, Ismael Silva, Oswald de Andrade e Henry Miller que, antes de ajudarem no crescimento da corcunda do camelo, são devorados pelo leão até chegar nesse lugar onde nada é de um possuidor, onde a autoridade se dissolve e resiste a rede variada de influências.

O próprio sentido de autoria do livro é abalado quando os dois poetas decidem assinar juntos todos os textos. O que traz o livro não são escrituras de André Monteiro, ou escrituras de Luiz Fernando Medeiros, mas uma estrutura em que se encontram as duas, juntas de todas as demais que cruzam o caminho do camelo (do leão, da criança, de seus etecéteras). Evitar este ponto de encontro seria, de acordo com certa passagem do livro, “rechaçar toda a possibilidade de conversa infinita do casal humano, a conversa infinita de dois seres que se atraem pelo afeto”. E é o afeto justamente o elemento que possibilita a união e coexistência de todas as vidas que brotam de Liubliblablá.

(…) o capitalismo não deixa, a moral não deixa. há que estar nos conformes. o corpo conformado a uma só gestão. mastigar e gestar o bolo da cultura. ejetar o que se tornou conforme.

Elemento subversivo, revolucionário, o afeto abala as estruturas do capitalismo e da moral. Não há estrutura social capaz de suportar a violência do encontro não delimitado pelas regras do corpo dócil, por isso o sistema constantemente tenta nos impedir do que pede o desejo. Para isso, então, caminha o leão: mastigando a massa ditada, quebrando as imposições, até que possamos chegar ao espaço livre da linguagem da criança. Nos aponta o livro que devemos quebrar sempre as estruturas, mas com ódio não se quebra nada. O amor, pela sua potência, o amor, pela sua força dos encontros positivos, é o que quebra.

quebrar não é suicidar a coisa
e esperar sua não coisa
quebrar é arranjar nas quebradas
a requebrada música de uma oferenda
não se quebra qualquer coisa de qualquer jeito
quebrar é dar um jeito
de arrancar da coisa mesma
sua coisa outra
como o mar
que se quebra na praia
como o amor
que quebra tudo
e nos multiplica ao infinito
(com ódio não se quebra nada
o ódio endurece corações
endireita músculos
e os torna inquebrantáveis)
haverá amor
que não seja amor
em pedaços?

Entre tantas publicações que nos chegam hoje em dia, e que podem também se acumular como uma grande corcunda, Liubliblablá brilha pela honestidade com que trata os discursos e como constrói o seu próprio; e também por se colocar neste terreno que não busca pra si um certificado último de raiz original, mas que brinca com a linguagem, com a vida e todos os seus desdobramentos e potências.

Planejava neste texto, ainda, uma última nota sobre o livro funcionar como um pequeno manual afetivo de como viver num mundo cada vez mais abarrotado de informações, que nos chegam de todos os lados o tempo todo, mas talvez a melhor escolha seja terminar assoviando Godard:

“somos treinados por meio de filmes norte-americanos a pensar que temos de compreender tudo de imediato. mas isso não é possível. quando você come uma batata, você não entende cada átomo da batata.”

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Liubliblablá: mastigações de um camelo
André Monteiro e Luiz Fernando Medeiros
Bartlebee
60 páginas

Nenhuma casa é segura

Mural de Nemesio Antunez

Alejandro Zambra

É fácil se apaixonar por Zambra. É fácil ler todos os romances de Zambra e se apaixonar por Zambra. É fácil ler os romances de Zambra porque: 1) a linguagem é estupidamente simples; 2) são curtos, muito curtos; 3) são de uma leveza narrativa incrível; 4) têm sido editados, aqui no Brasil, desde 2012, em belos volumes pela Cosac Naify. Formas de voltar para casa, o maior até agora (160 pp.), dá continuidade ao projeto de edição brasileira das obras do chileno, depois de Bonsai e A vida privada das árvores, e a editora já divulgou que publicará em breve o livro de contos/novelas Meus documentos. As edições não trazem nenhuma fotografia de Zambra, mas é fácil de encontrar no Google, imprimir, emoldurar e colocar do lado da cama.

Formas de voltar para casa lida com os desafios de se voltar para casa, a construção e não somente, de todas as formas que isso vai se apresentando aos personagens do livro, de todas as formas que isso se apresenta a nós. Voltamos ao terremoto de 13 de março de 1985, mas também às tensões da ditadura no Chile, em uma narrativa ágil, como a dos primeiros livros. A questão nem é quem fica ou não do lado de Pinochet, mas a inocência e a culpa de quem ignora essas questões. Raúl, o homem solitário da vila, que se esconde por trás de uma identidade que não a sua, é apenas um ponto de encontro entre o narrador e Claudia, que precisa voltar, anos depois, para que o romance funcione. “É mais fácil entender assim. É melhor pensar que tudo isso foi uma história de amor”, mas os romances de Zambra nunca são uma história de amor. Quer dizer, todos precisam de uma história de amor porque, no fim, são sempre sobre a perda. Os romances de Zambra, e Formas de voltar para casa principalmente, são construídos através do desejo.

Em dois planos o narrador-personagem desenvolve a narrativa e mostra a fratura dessa construção: “Voltei ao romance. Ensaio mudanças. Da primeira para a terceira pessoa, da terceira para a primeira, até para a segunda”. O livro, que é sobre os pais, mas também sobre Eme, é em tudo sobre o escritor. Para escrever sobre Eme, a ex-mulher, é preciso reabitar a casa, em uma tentativa de reconciliação que nunca será possível, como a prosa não é possível e se torna ritmos, cadências:

É melhor não sair em nenhum livro
As frases que não nos queiram abrigar
Uma vida sem música e sem letra
E um céu sem essas nuvens que agora
Você não sabe se estão indo ou vindo
Essas nuvens quando mudam tantas vezes
De forma que ainda parecemos estar
Morando no lugar que abandonamos
Quando ainda não sabíamos os nomes
das árvores
Quando ainda não sabíamos os nomes
dos pássaros
Quando o medo era o medo e não existia
O amor pelo medo
Nem o medo pelo medo
E a dor era um livro interminável
Que um dia folheamos só para ver
Se no final apareciam nossos nomes.

É preciso, antes de tudo, sair da casa. E uma vez é por todas. É preciso retornar, depois de algum tempo, porque estamos sempre voltando pra casa, e confrontar a literatura dos pais com a literatura dos filhos. Uma hora é preciso, agora sim, saber se os pais apoiavam ou não Pinochet, mesmo que a ditadura não seja sua, mesmo que você nem tivesse nascido. Os anos 70 e 80 chilenos constantemente são recuperados na prosa dos contemporâneos e com Zambra acontece de maneira sutil e profunda. A ditadura acompanha cada movimento do livro, mesmo que disfarçada, ou discutida em voz baixa (sempre discutida em voz baixa) enquanto o pai dorme e mãe e filho fumam na sala. É preciso sermos todos personagens secundários.

Visitar a casa do passado não é voltar ao passado – é bom que não nos enganemos, mas é para isso que servem os álbuns de fotografia, “para nos fazer acreditar que fomos felizes quando crianças. Para nos demonstrar que não queremos aceitar o quanto fomos felizes”. Formas de voltar para casa não é um livro sobre a casa, tampouco sobre a ditadura. Pode ser que nos engane e alguns pensem que é uma espécie de ensaio autobiográfico que culmina na construção de um romance, construção tal esmiuçada nas partes 2 e 4 do livro, mas não. Acredito que, muito mais que as revoluções e as tensões entre o voltar e o estar, mais do que as tentativas de um corpo de habitar e ser habitado por uma casa, é um livro sobre o sossego, deste que existe quando não há mais retorno. O livro de Zambra é um ensaio contundente sobre amadurecer e não caber mais nas roupas dos pais. Pode ser que as revoluções, como diz um poema da Matilde Campilho, sejam mesmo o lugar certo para a descoberta do sossego: “talvez porque nenhuma casa é segura / talvez porque nenhum corpo é seguro / ou talvez porque depois de encarar uma arma / finalmente seja possível entender / as múltiplas possibilidades de uma arma”.

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Formas de voltar para casa
Alejandro Zambra
Cosac Naify
160 páginas

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(Publicado originalmente na edição #01 da revista OGaribaldi)

Ficção de Polpa – Volume 5: Aventura!

Capa FdP5

Há uma lenda que circunda o meio literário, mais precisamente o meio literário acadêmico, que a literatura de massa, melhor, a literatura de entretenimento, necessariamente precisa ser de baixa qualidade. Claro que temos certeza de que isso não passa de um mito, mas como comprovar? O quinto volume da série Ficção de Polpa, denominado “Aventura!”, lançado pela Não Editora, em 2012, chega justamente para corroborar nossa afirmação.

Segundo exemplar da série dedicado exclusivamente a um tema, este Ficção de Polpa mantêm a qualidade gráfica dos anteriores, contando, inclusive, com antigas propagandas (reais) esporádicas no meio dos contos, dialogando com a trama, e que simulam a leitura de um verdadeiro exemplar pulp. São seis contos inéditos com as temáticas clássicas da Sessão da Tarde: dinossauros, guerra, expedição para a Antártida, piratas, vingança e tesouro – além de uma tradução de “O Aranha”, de Arthur O. Friel, como faixa bônus.

Percebe-se um verdadeiro interesse dos autores em levar “diversão de qualidade” para as páginas do livro, como é o caso de “Por favor, não toque nos dinossauros”, de Bruno Mattos, uma trama à la Jurrasic Park, com verdadeiros dinossauros que dão o fôlego inicial desta coletânea. Consegue-se manter a tensão e a atenção do leitor no seguinte “Melhor servido frio”, de Carlos Orsi, conto sobre uma expedição científica que tem como fio condutor os temas traição e vingança (muito caros a este volume, como se pode perceber com o não tão bem sucedido “A joia de Évora”, de Christopher Kastensmiot). O livro soa divertido e “leve” até este ponto, mas o interesse aos poucos se dispersa ao chegarmos em “A igreja submersa”, de Simone Saueressig que, apesar de ser uma narrativa bem trabalhada, peca pela repetição da constituição da trama e parece, em certa medida, uma “forçação de barra” para adequar o conto ao volume. No entanto, o objetivo inicial do livro é cumprido – como coloca o organizador Samir Machado de Machado no prefácio: “é aí que chegamos à proposta desta coletânea: abandonar o tom cinzento de incertezas e angústias que dominam nossos mundos adultos e neuróticos e trazer de volta o preto e o branco sólidos da adrenalina, da tensão e do temor que todos já experimentamos pessoalmente”.  Porém, apesar do visível trabalho de pesquisa e qualidade narrativa, os contos “Virtude selvagem”, de Júlio Ricardo da Rosa e “Seis quilômetros”, de Carlos André Moreira, perdem um pouco essa adrenalina citada, possivelmente pela longa narrativa, que fará um leitor desacostumado com este gênero (assim como eu) cair no sono ou ter de retornar algumas páginas para compreender o que se passa.

Deixando de lado essa discussão pessoal sobre gostar ou não de um conto, passemos a uma questão indiscutível: a revisão textual. O livro perde muitos pontos pelos inúmeros erros de concordância e ortográficos, possivelmente resultantes de uma pressa imensurável de fazer com que o volume saísse. Infelizmente, perde ponto também a editora, que até então vinha surpreendendo em cada lançamento pela qualidade visual e textual das obras. Obviamente isto não interfere na compreensão do texto e acreditamos que estes problemas serão resolvidos nas próximas edições.

Por fim, Ficção de Polpa – Aventura! sem dúvida se mostra um leitura indispensável, tanto para os que curtem a literatura de entretenimento, quanto para os mais “pseudinhos”, que querem saber o que está rolando no mercado atual. Um livro para se ler debaixo dos cobertores em dias de chuva enquanto não começa o filme na TV.

PS.: Para quem curte essa parte do design dos livros, recomendo dar uma conferida no incrível blog Sobrecapas, do Samir Machado de Machado, mais exatamente no post sobre a “confecção” deste livro (só clicar aqui).

por Otávio Campos

nota fcição

Da arte das armadilhas, de Ana Martins Marques

A poesia contemporânea brasileira vem passando por uma fase promissora (pelo menos acreditamos) e revela diariamente nomes que vêm surgindo na internet e publicados por pequenas editoras. O mais interessante nessa nova jogada é que (de uma forma ou de outra) as publicações e consequentes reverberações fogem do fixo eixo Rio – São Paulo. É o caso da poeta Ana Martins Marques, vencedora por duas vezes do prêmio Cidade de Belo Horizonte de Literatura, que estreou no mercado editorial com seus poemas premiados no livro A vida submarina (Scriptum, 2009). A repercussão de seu primeiro trabalho chamou a atenção do poeta Armando Freitas Filho e expôs Ana aos holofotes do mundo das letras.

Em seu segundo trabalho, Da arte das armadilhas (Companhia das Letras, 2011), Marques retoma alguns temas do livro anterior e se mostra capaz de suportar as expectativas depositadas nela ao longo dos anos. Da arte é um daqueles livros que não se pode ler deitado: talvez sentado, mas às vezes é inevitável dar um pulo, um soco no joelho e gritar: é isso! A mineira dispõe em versos a honesta poesia sentimental contemporânea, que passa por assuntos como abandono, solidão e observações íntimas – como é o caso da primeira parte do livro: “Interiores”, na qual há um movimento duplo de internalização do meio (no caso, a casa e seus arredores) e exteriorização do eu. Pode-se observar este movimento nos poemas que se seguem:

CÔMODA

E dela
o que restou
senão
sobre a cômoda
um par de brincos
que talvez não sejam dela?

TORNEIRA

Quem abre a torneira
convida a entrar
o lago
o rio
o mar

VARAL

Suas camisas
colorem
o vento

*

Seus jeans
atualizam
a paisagem

*

Sua camisa branca
rendida
com
ao fundo
a noite
ampla

“Da arte das armadilhas”, segunda seção do livro, parece manter esse mesmo eu, que agora já busca outros espaços de composição poética, como a mitologia (em poemas como Carta a Safo, Mitológicas, Ícaro (1) e (2) e Penélope). Observa-se poemas já mais preocupados com a forma, que beiram uma metapoesia, mas ainda passando pelo corpo e suas insinuações:

A descoberta do mundo

Procuro alcançar-te
com palavras
com palavras
conhecer-te

como quem
com uma lanterna e um mapa
crê empreender
a descoberta do mundo

levanto-me
estou sozinha no escuro
com dois pés
no cimento frio

(onde estás
no que escrevi?)

A linguagem simples e acessível ajuda na retirada da poesia do pedestal hermético no qual esteve por tanto tempo mantida. Ler os poemas de Ana Martins Marques assemelha-se (até certo ponto) à leitura de uma prosa bem colocada, disposta em versos, mas com uma apuração “teórica” e formal capaz de inseri-la (com excelência) no universo lírico. A máscara vestida nesse livro (ou talvez persona, visto que parece ser um mesmo personagem que se deixa mostrar em todas as páginas) é uma espécie de Penélope (citada diversas vezes, da mesma forma que em A vida submarina) que, cansada de esperar também sai para ver:

Três postais

AMAZONAS

O mundo cheio
vazio

À beira da água
as núpcias da anta
e da vitória-régia

Peixe luminoso
água escura

Na primeira parada do barco
um enxame
de crianças antigas

SÃO PAULO

Depois de um tempo
todas as coisas ficam marcadas
como se estivessem
impregnadas de veneno

Há um tempo em que os lugares
são limpos e novos
abertos como clareiras
mas já não é este o tempo

Sobre cada lugar se sobrepõe
a experiência do lugar
como um selo
num cartão postal

Por exemplo
hoje sempre que sobrevoo
São Paulo
penso que em algum apartamento
desta cidade interminável
você
fumando
de óculos
exerce seu direito
inalienável
de não mais pensar
em mim

BELO HORIZONTE

[1]

Um dia vou aprender a partir
vou partir
como quem fica

[2]
Um dia vou aprender a ficar
vou ficar
como quem parte

Mas ainda é a mesma que fica, na tensão de um Odisseu que pode ou não voltar, confundindo entre poemas lembranças e perda.

Cinema

Encontramos na rua
uma fileira de cadeiras
de um velho cinema
levamos para casa
colocamos na varanda
passamos toda a tarde
bebendo e fumando
assistindo passar
um dia qualquer

 

A partilha
……………………d’après Joan Brossa, Pequena apoteose

Eu
e você

ao menos este poema
dividimos
meio a meio

Otávio Campos

  • Da arte das armadilhas
  • Ana Martins Marques
  • Companhia das Letras, 2011, 86 páginas

Fragmentações e deslocamentos: A outra praia, de Gustavo Nielsen

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O premiado autor argentino Gustavo Nielsen aparece pela primeira vez no Brasil em tradução de Henrique Schneider com o vencedor do Clarín de Romance 2010 A outra praia. Possivelmente um dos melhores (quiçá o melhor) romances estrangeiros publicados no país este ano. Certamente, o mais misterioso.

Desde a epígrafe fica claro quem será o protagonista desse romance: “Assim é a fotografia: não sabe dizer o que mostra.” (Roland Barthes). Pois bem, nosso personagem principal é a fotografia. Mas não estamos falando de um livro experimental em fragmentos fotográficos, mas de uma narrativa linear (ou quase) que envolve todos seus personagens ao redor da arte da escrita de luz.

Em um primeiro momento, somos apresentados a dois casais de amigos, que assistem a projeções em slides de fotografias de desconhecidos, o que os leva a inventar histórias sobre a vida daquele homem e daquela mulher presentes nas imagens. Da mesma forma, fazemos nós leitores, tentando desvendar quem são esses que se sentam e discutem sobre registros da vida de estranhos. Descobrimos, no capítulo seguinte, que um dos homens do casal, Antônio, o qual lidera os desdobramentos narrativos, é um fotógrafo profissional que está passando por um momento de crise na sua vida. Não se sente pertencente à própria família. Sua mulher e filha são para ele completamente estranhas e, visando um sentido para sua existência, se refugia na fotografia. Em uma de suas voltas pela cidade, fotografando estranhos, impressiona-se com certa jovem (que, não sabe como, mas tem certeza que seu nome é Lorena) com a qual utiliza praticamente um rolo de negativo. A partir daí a misteriosa moça se torna para ele uma obsessão, colocando-o quase em um surto. Para ajudá-lo nessa crise, seu amigo Zopi o acompanha até uma casa de praia, onde passam uns dias longe de tudo para tentar colocar as coisas no lugar. No entanto, as coisas parecem piorar, pois Antônio sente cada vez mais a necessidade de rever Lorena, intensificando com o sentimento da presença da mesma naquela casa de praia.

Depois de uma conversa profundamente existencial e filosófica entre Antônio e Zopi (de onde podemos retirar a excelente constatação “Aceitar que a pré-cognição existe e aceitar que essa vida já foi vivida.”) o livro se desloca para uma outra constituição narrativa. Perde um pouco seu caráter realista descritivo e flerta com o fantástico. Somos apresentados a outra dimensão e outros personagens: a também fotógrafa Lorena (sim, a que foi fotografada por Antônio) e seu namorado, o escritor de livros de terror, Gustavo. Menos da metade do livro é dedicada a essa “outra” narrativa, que se inicia com o escritor tentando produzir um novo romance na casa de praia. A casa de praia é a mesma de Zopi e Antônio, porém já é outra, visto que se situa em outro tempo e outro espaço. Todavia, Antônio e Gustavo se encontram, o que rompe com todo o sentido da realidade tanto do escritor quanto do fotógrafo. Tal tensão (e confusão na mente do leitor) permeia todos os momentos finais da narrativa e vai se dissolvendo até o derradeiro desfecho, com o encontro físico (ou quase) de Antônio e Lorena (que possuem muito mais ligação do que aquele imaginava) na casa de praia.

Praticamente uma ode à fotografia (o que deixa os leigos, com eu, confusos em momentos que descrevem a prática da revelação dos negativos), no entanto obter apenas essa leitura é algo que empobrece o romance. A outra praia consegue a façanha que nenhum outro livro contemporâneo havia conseguido até então: ser ao mesmo tempo uma narrativa profunda, filosófica e ter aquela pegada de mistério que faz com que o leitor devore o livro atrás de uma “solução”.

Otávio Campos

A outra praia
Gustavo Nielsen (trad. Henrique Schneider)
Dublinense176 páginas

nota outra praia

Monstros fora do armário

É interessante pensar em como a relação entre pais e filhos vem sendo tratada no âmbito da literatura brasileira contemporânea (e lá vou eu tocando mais uma vez nesse assunto), bem como o esvaziamento de sentido da instituição familiar como um todo nas últimas décadas. Em seu livro de estreia, o gaúcho Flavio Torres se propõe (ou não) a “estudar” essas relações delicadas e perigosas, tornando-as mote para a concepção dos onze contos que compõem Monstros fora do armário (Não Editora, 2012).

O livro é dividido em três sessões: “Concepção”, “Gestação” e “Legado”, cada qual, no projeto gráfico, com sua tonalidade característica, o que nos faz lembrar um pouco de A fera na selva, de Henry James, editado pela Cosac Naify. À medida que as situações no livro vão se tornando mais intensas, as páginas vão escurecendo, trazendo ao leitor a experiência ativa da leitura. A primeira parte do livro (“Concepção”), composta por um único conto, transborda um lirismo desconfortável desde a primeira linha até o final. Mesmo tratando de dois temas que causam um impacto, Flavio transforma o conto em uma sutil, porém desesperada, procura pela gravidez e, consequentemente, a busca em deixar descendentes por uma mulher que já possui seus dias contados. Pode-se ler este como o conto mais leve dentre os demais, possivelmente por este motivo, as páginas são brancas, com tipografia negra.

A sessão seguinte é composta por nove contos, sintéticos (não passam de dez páginas), densos e sem títulos. Qual um soco no estômago, “Gestação” traz, quase em sua totalidade, personagens crianças, que guiam ou amparam a narrativa para que esta atinja seu objetivo, que parece ser única e exclusivamente causar o desconforto do leitor. Com páginas acinzentadas, a segunda parte do livro traz contos como o de uma criança de rua que procura uma prostituta, pensando ser esta sua mãe, um pai que obriga o filho a cometer zoofilia, duas crianças que matam um cachorro para evitar o sofrimento deste, entre outros, mas creio que o destaque maior deve ser dado à prosa intitulada “Quarto” (no sentido ordinal). Um simples almoço entre pai e filho, preparado nas primeiras linhas e, logo em seguida, em flash back, somos apresentados aos fatos que precederam esta cena. Somos remetidos, no instante, à narrativa dura, sangrenta, e crua, de Ana Paula Maia na Trilogia “A saga dos brutos” – os mais cinéfilos provavelmente se lembrarão de Estômago , ou até mesmo Sweeney Todd.

Os contos presentes na segunda parte do livro dificilmente serão classificados como originais ou surpreendentes, mas operam quase como dentro de uma brincadeira, na qual o leitor, para fugir do choque anterior, procura saída nas páginas seguintes e, qual uma leitura no escuro, compreendem que não há saída. Uma sucessão de fatos e imagens que se escurecem até a parte final: “Legado”. De páginas completamente negras, o único conto que compõe a terceira sessão do livro surge para quebrar a velocidade e a dinâmica da parte anterior. O que parece ter sido jogado no papel e embaralhado em “Gestação”, aqui já aparenta ter sido um trabalho muito mais cuidadoso, com uma rigidez técnica que remete ao conto de abertura do livro. Esse sim é um conto que deve ser lido mais vezes, para que possamos captar nas entrelinhas (mas não necessariamente) a perversão e a palidez urbana. Sem exageros, o livro termina com um beijo que, diferente da leitura da orelha, não deve ser enxergado como uma esperança, mas uma armadilha cravada no asfalto.

Todos temos nossas paranoias e medos, é claro, mas enquanto alguns preferem deixá-las trancadas em casa, outros as exacerbam descaradamente. Flavio Torres traz para fora (do armário) esses monstros que não existem apenas no nosso imaginário, mas estão nas ruas, nas relações cotidianas, nas moedas que são pedidas no trânsito. Mais do que um simples livro de contos contemporâneo, Monstros fora do armário é um estudo antropológico hiper-realista mesclado com uma experiência estética única (?), devido ao zeloso e bem cuidado projeto gráfico de Samir Machado de Machado (que explica tudo direitinho aqui), que permite ao leitor ser instrumento quase ativo nessa obra.

por Otávio Campos

nota monstros

Jardim de veredas que coincidentemente (ou não) se reincidem

Ultimamente, ando mesmo julgando o livro pela capa (concordando totalmente com o que a Larissa Andrioli já disse por aqui). E em uma dessas minhas aventuras de começar uma leitura pela diagramação frontal me deparei com Em que coincidentemente se reincide (Dublinense, 2010), primeiro livro “individual” da paulista Leila de Souza Teixeira, que me serviu não apenas para enfeitar a estante, mas também para me encantar cada vez mais com a alta qualidade das produções literárias atuais. O interessante é que nunca sei como começar uma resenha de um livro de contos, ainda mais desse tipo de livro, em que é quase impossível deixar de falar de um conto sequer, visto que estão interligados, sendo o livro cortado ao meio e refletido na mesma proporção da metade adiante. Em que coincidentemente se reincide traz essa levada bacana do Cortázar em O jogo da amarelinha, em que, seguindo o “roteiro” marcado no sumário, o leitor pode tanto começar o livro e seguí-lo linearmente, ou ir “pulando” os contos e chegar no que corresponde ao último lido.

Como a própria capa indica, o livro é mesmo uma árvore, com galhos paralelos que se encontram no topo. Uma brincadeira circular, iniciada em “Corte seco”, no qual, em primeira pessoa, o narrador constrói um roteiro, ou melhor, narra na forma de um roteiro de edição os fatos que culminaram na cena de sua amada deitada sobre um caixão, com as mãos em cima do estômago; e refletida no último conto “Processo desconstrutivo”, com as mesmas imagens do espelho, do carro e uma crise criativa que faz com que o contista exclua tudo que já foi escrito. As relações se tornam mais evidentes nos demais, como “Girassóis” e “Oito”, que apresentam uma Luiza atormentada, fugida, indo para São Paulo, com o sol dourado na cara, que de tamanha perfeição narrativa nos deixa tonto. Creio que independente da ordem que os contos são lidos, farão todo o sentido, mas, se a autora os colocou nessa disposição é porque talvez tenha pensado ser essa a melhor forma de concebê-los, e é o que acontece ao lermos “(Ana)” e “Ato III”, nessa cronologia. O primeiro, com o marido no carro e as mãos nas pernas de Danilo, e o segundo com Ana, plena, reconstruindo Hamlet para mostrar que sim, ela sabia da paixão do marido pelo seu melhor amigo. E o conto que dá título ao livro “Em que coincidentemente se reincide” é reflexo de “Doutrina dos ciclos” e talvez o par mais intrigante que traça os destinos simétricos de mãe e filha, não que o acaso conspire para que se repitam, mas, pela ciência de uma, a repetição se torna quase necessária – expondo de maneira magistral (e metalinguística) o jogo que o leitor vem percebendo durante toda a leitura.

Pela sutileza das composições e o visível labor em cada capítulo, percebe-se que, para Leila, a concepção de conto ultrapassa os limites de uma simples short story, mas se enraíza em um universo de quem trilhou com maestria essa arte, que é Jorge Luis Borges, o qual a autora faz questão de deixar claro sua influência, seja por meio da narrativa ou na epígrafe do borgiano “O palimpsesto de Sür”.  Uma leitura que puxa outra leitura e chega novamente na inicial, lembrando, o também citado no livro, Nietzsche, que postula a teoria do Eterno Retorno (aqui entrando mais uma vez Borges, sendo o autor que cita a leitura do filósofo). Por mais que soe complicado, creio que o livro – mesmo sendo um trabalho sério – não passa de uma brincadeira, trazendo o universo lúdico, que faz tanta falta, de volta à literatura.

Por minha vez, trago Borges, pois creio que, tomando a árvore da capa, o livro pode ser lido com um grande jardim, de veredas que se bifurcam.

por Otávio Campos

Sob o céu de agosto: uma resenha ou um breve retrato da literatura contemporânea

Há algum tempo que venho observando de que maneira a literatura contemporânea brasileira (para ser mais exato, a literatura contemporânea urbana brasileira) vem se repetindo. Em uma infinidade de livros e autores (como Marçal Aquino, Lourenço Mutarelli, Daniel Galera e Patrícia Melo) há temas que são recorrentes e, de certa maneira, cruelmente presentes, dentre eles estão o problema com o casamento, o envolvimento em algum tipo de “crime”, problemas com trabalho, inquietações psicológicas, a confusão do eu com a cidade e, obviamente, a solidão. Posteriormente, gostaria de fazer um estudo mais aprofundado nesse tema, apesar de já ter encontrado algumas respostas que soam como “confortáveis” no momento. A atual cultura urbana brasileira se reflete quase que exclusivamente nestes pontos, os quais não poderiam, obviamente, deixar de conduzir a veia narrativa dos que estão imersos nesse mundo.Porém, como era de se esperar, os romances começaram a ficar repetitivos e a solução de encontrar o “novo” foi não mexer no tema, mas sim na forma.

O gaúcho Gustavo Machado sem dúvida é um reflexo da nova tendência literária, conforme pode-se constatar com seu primeiro romance, Sob o céu de agosto (Dublinense, 2010). Algo que visivelmente se destaca no texto de Machado é a presença de duas narrativas: num primeiro momento, somos apresentados a Otto, artista plástico, 35 anos, narrador. O protagonista, ainda com cacos nos olhos, descreve a cela carcerária na qual se encontra e o policial que o observa e o pede para narrar o que realmente aconteceu, já que está sendo acusado de duplo homicídio e, por ter influentes amigos na política, possivelmente será posto em liberdade. A segunda narrativa, iniciada a partir do segundo capítulo, começa justamente daí – é o mesmo narrador, porém o foco narrativo é outro: os eventos que antecedem o capítulo inicial do livro; outro também é o destinatário da narrativa que, apesar de o leitor se desfrutar desses fatos, não deve se esquecer de que os mesmos são cuidadosamente preparados para o conhecimento do oficial, que deve ser convencido de que Otto não é o culpado dos crimes. As narrativas “distintas” caminham inicialmente separadas por capítulos, sendo fácil percebe qual número precede a cada. Mais adiante, o policial interrompe a fala do narrador dentro de um capítulo destinado à história de Otto e já no capítulo 19 (dos 21 do livro) as duas narrativas se encontram, visto que o tempo passa a ser o mesmo. Com o encontro do tempo apenas no fim do livro, percebe-se que logo de cara encontraremos desde o início o final da história, mas realmente isso é o que pouco importa. Somos tentados a descobrir o que Otto faz na delegacia, e quem são os personagens que ele supostamente matou.

Pintor solitário, Otto vive em um apartamento no que parece ser a região urbana de Porto Alegre. Já há muito desempregado, recebe um telefonema do amigo Teo, oferecendo-o um emprego. Como professor de pintura conhece a femme fatale do romance: Sophia, a jovem (com sérios problemas com o marido) com a qual se envolve e tenta ajudar a fugir para o Uruguai. Moradora do apartamento acima, a jovem de 15 anos Berta brinca de “casal” com o artista (quando sua mãe não está em casa, é claro), denunciando uma relação pedófila que caminha à beira do abismo mas que, graças à maestria de Gustavo Machado, se mostra dócil e delicada, até simpática, pela construção descontraída da personagem secundária.

O espaço e o personagem se bifurcam. No início e no fim do romance vemos Otto recluso no apartamento. Lugar quente, devido à estufa que ele mantém sempre ligada. É este o personagem centrado em si, convivendo com a sua decadência intelectual e suas limitações, percebendo a relação perigosa que vem mantendo com Berta mas, ao mesmo tempo, reconhecendo o quão importante a menina se apresenta (talvez Berta seja a expressão máxima de companheirismo dentro do livro). Com a oferta do emprego, o protagonista flerta com a rua, com a cidade e sua vida passa a tomar o mesmo fluxo: desordenado, barulhento. É convivendo com a movimentação urbana que Otto conhece Sophia, faz sexo com Berta, destrói o carro de Teo, invade uma propriedade privada. Apesar de ser a rua a responsável pelo maior número de relações, é nela também que se encontra o frio, daqueles de doer os ossos e arder os olhos.

Dentro de casa percebemos as cores: do café, da massa do bolo de cenoura, dos cabelos, dos instrumentos dos discos de jazz. Na rua, apesar das tintas da aula de pintura, a cor é uma só: um cinza azulado, a qual Otto batizara de Céu de Agosto. Mesmo com todas as técnicas, o pintor nunca conseguira reproduzir tal cor, apenas a descrevia, com pesar. O lado de fora e o lado de dentro nunca dialogavam no mesmo espaço, até que, após todas as desventuras, Otto chega em casa e pinta. Mais uma vez sem emprego, de novo entregue ao lar e à companhia de Berta, apesar das condições finais se equipararem às iniciais, as coisas já não seriam a mesma. Dessa vez, dentro de casa e perto do calor da estufa, está também o Céu de Agosto, imortalizada numa tela na sala.

Mesmo que os temas se esgotem, fica claro que eles nunca se repetem. Mais do que a forma, creio que o diferencial de um livro é a cor. Sob o Céu de Agosto, Gustavo Machado confirma seu potencial diante desse mundo de livros que não para de crescer.

por Otávio Campos

Precisamos falar, rapidamente, sobre o Kevin

Pela tradição judaico-cristã Eva é o nome da primeira mulher que, ao provar do fruto proibido é expulsa do paraíso. Eva Khatchadourian, sem dúvida, não se difere muito da homônima descrita na Bíblica e no Alcorão, pois ao conceber seu fruto, no caso, o filho, sua vida se torna um verdadeiro inferno. Sim, estamos falando sobre a personagem principal do romance de Lionel Shriver, Precisamos falar sobre o Kevin.

A arte de tirar o fomento para romances das primeiras páginas dos jornais não é novidade, mas a maneira como Shriver utiliza a notícia de um adolescente de 15 anos ter matado 12 pessoas em uma escola nos Estados Unidos é o que faz desse livro um marco da literatura contemporânea. A autora não se vale apenas do fato em si, mas de todos os acontecimentos que precedem a “chacina”, desde a concepção e nascimento de Kevin Khatchadourian até as constantes visitas de sua mãe na penitenciária. Pois bem, o livro já começa com uma dessas visitas, ou melhor, o relato dela por Eva. A narrativa toda se baseia em cartas dessa mãe para Franklin, seu marido que está ausente.

Apesar de ser uma pergunta recorrente na história e, com certeza, na cabeça de todos que a leem ou pelo menos ouvem falar sobre, o que levou Kevin a cometer o crime de longe é o que necessita ser respondido nesse livro. De forma perturbadora, a autora visa traçar uma narrativa mais preocupada na relação entre Eva e Kevin e a pergunta que fica é “pode uma mãe odiar seu filho?”. Num primeiro momento, responderíamos que sim, visto que desde o início Eva detesta Kevin (porque ele representa pra ela a derrota da dor do parto?), apesar de ela tentar nos convencer que isso não é verdade, que era Kevin quem a detestava. Nesse ponto, é necessário ressaltar que precisamos ser muito cuidadosos ao ler o livro, para não cairmos nas “armadilhas” do narrador. Mais do que um livro em primeira pessoa, o romance é constituído de cartas, nas quais Eva tenta (acredito) eximir sua culpa sobre os acontecimentos.

Em quase quinhentas páginas (mal revisadas pela Intrínseca), somos levados a conhecer o ápice e o declínio profissional de uma mulher, que entra na vida adulta como promissora diretora de uma empresa de guias de viagens baratas e passa a ser uma frustrada dona de casa, que não consegue se encaixar no papel de mãe. Vendo que seu esperado bebê não saiu conforme a encomenda, o que Eva faz? Desiste? Não, mas tenta novamente e, dessa vez, parece dar certo, já que a pequena Celia exala a feminilidade e a doçura que tanto conforta Eva. É plausível que Kevin seja uma criança problemática e que tenha realmente cometido todos os pequenos delitos infantis que a narradora elenca, mas são dúvidas que nunca serão respondidas e o que nos resta é ter tal consciência e nos deixar estremecer toda vez que o pequeno Khautchadorian entra em cena (com nãnãnãnã, revólveres de brinquedos ou à la Robbin Hood).

A adaptação do livro para as telas, apesar de render um post à parte, sem dúvida é algo que deve ser ressaltado por aqui. Sem a burra pretensão da fidelidade que tanto estraga esse tipo de trabalho, Lynne Ramsay tem consciência da transposição das letras para frames da história de Shriver, e realiza da melhor maneira possível (me arrisco em dizer que talvez seja essa uma das mais brilhantes adaptações que já houve). A cronologia inexistente e arrebatadora é o elemento perturbador da película, que é deliciosamente perpassada por pelo menos um detalhe vermelho em todas as cenas (o que renderia uma grande discussão sobre a simbologia do Vermelho e o Negro na história). Eva é incrivelmente representada por Tilda Swinton, e consegue passar toda pulsação de culpa x inocência presente na narrativa, apenas com o olhar. O livro e o filme são obras distintas que dialogam (e não necessariamente se encaixam) e criam dois universos sobre este fato.

Tilda Swinton interpretando Eva Khatchadourian na adapatação de Lynne Ramsay

Um tapa na cara e um soco no estômago: é a sensação que se expande depois de cada capítulo. Apesar de não haver tal necessidade para o livro ser classificado como excelente, o final é algo catártico, chocante, desesperador que, se até lá o leitor não tiver conseguido responder, Shriver mostra a resposta para a questão cerne do romance. Sem mais delongas (o texto é curto porque é quase impossível comentar sobre o livro sem disparar um importante spoiler), sem dúvidas Precisamos falar sobre o Kevin é um livro que merece ser lido, lido, estudado, escondido, flechado, temido, lido e comentado.

por Otávio Campos

Bom Dia Camaradas: um panorama íntimo de Angola narrado por uma criança imersa em antigamentes

por Danilo Lovisi

O romance Bom dia camaradas (Agir, 2006), do escritor angolano Ondjaki, nos apresenta uma Angola pós-independência, através de uma história ambientada na Luanda da década de 80. Um panorama íntimo que tem como condutor um narrador infantil, adequadamente consciente e não demasiado lírico: a justa medida que apreende o leitor sensível e interessado logo nas primeiras páginas.

O termo panorama íntimo se dá pelo caráter interno e memorialístico que transpira da história, provavelmente pela forma como é apresentada: através de uma criança da classe média, construindo sua consciência política e existencial, envolta – mesmo inserida numa classe um pouco mais elevada – envolta, invariavelmente, numa realidade social densa, pitoresca, mas não por isso menos viva e aberta ao lírico.

Além disso, há elementos da própria construção narrativa que já nos colocam, queiramos ou não (no fundo, é uma escolha do leitor), dentro dessa realidade, desse fragmento ficcional. A história começa dentro da casa, na cozinha, e o garoto-narrador (sem nome) pergunta ao personagem António: “Mas camarada António, tu não preferes que o país seja assim livre?” – essa pergunta, carregada de cunho político, na voz de uma criança, dá todo – ou quase – o tom do restante do livro, pois Ondjaki consegue, de forma natural, diluir o discurso político na fala infantil e, utilizando da flexibilidade e da natural presença do lirismo na infância, mescla parte da narrativa com belíssimos momentos poéticos, amenizando, de certa forma, passagens brutais e frias, impossíveis de ignorar em se tratando daquela (e por que não da atual) realidade social de Luanda.

Acompanhando o ano letivo do garoto, a história é tecida, mesclando os afazeres escolares com os acontecimentos inerentes à realidade de Luanda. Como a ida dos estudantes à rádio local, onde supostamente apresentariam seus próprios textos, mas são impelidos à ler um certo papel datilografado, demonstrando, de forma sutil, a imposição política ainda viva naquele tempo; ou o quase fuzilamento do garoto e sua tia (que vem de Portugal para uma visita, portanto não inserida na cultura do medo fortemente instaurada em Luanda) simplesmente por não estarem – por pouco! – em posição de sentido na passagem do carro do então presidente; ou as passagens tragicômicas, sendo a melhor de todas, a descrição da cena da professora de inglês – que tinha algum problema na perna – correndo, junto aos estudantes desesperados, de um suposto grupo reacionário que estaria invadindo a escola.

Tchissola, Lelinha, Ndalu, Kiesse e Dilo. Personagens de “Bom dia camaradas”.

Tudo isso, e muito mais, construído através de um vocabulário peculiar ao leitor estrangeiro, por razão da inserção de inúmeras palavras e expressões originalmente africanas (mas detalhadamente explicadas num glossário ao final da bem cuidada edição da Agir), ali inseridas de forma talvez excessiva, mas presentes nessa quantidade por uma questão, talvez, política, relacionada à um ideário de propagação da cultura angolana/africana através da língua.

E é exatamente sobre língua e linguagem que prosseguimos, pois é interessante ressaltar que as imagens evocadas pelas palavras utilizadas e as descrições delicadamente elaboradas pelo narrador, nos remetem a uma fotografia sépia, porém tão nítida e real que parece estar em alto relevo, sendo possível quase tocar suas texturas; ou nos lembram uma gravação antiga de família, tão nostálgica e saudosa, que chega a ser capaz de nos fazer sentir o cheiro do almoço de domingo, ou de ver “a chávena à minha frente, o fumo que saía da chávena” e sentir “o cheiro do pão torrado, o cheiro da manteiga a derreter nele”,  culminando em momentos de extremo lirismo: “mas o mais bonito era ver ali em frente o abacateiro. Vocês sabiam que o abacateiro também se espreguiça?”.

O próprio Ondjaki, quando pequeno, sob o “abacateiro que se espreguiça”.

O romance, então, além de nos evocar reações várias, também promove reflexões substanciais. Sobre isso, é interessante basear na premissa de que a literatura africana por vezes se divide na literatura do mar e na literatura do deserto, sendo a primeira caracterizada pela busca do/no outro, pela ânsia do novo e do real, e a segunda, associada a reflexões mais internas, relacionadas ao eu. O que promoveria, então, a literatura proveniente do meio urbano? Talvez, uma imposição: ou conscientiza-se hibridamente (o eu, o todo e o além) ou aliena-se, seja pelo senso comum, ou pela fuga do real – ações estas extremamente compreensíveis, devido à realidade lá encontrada.

Bom dia camaradas é, portanto, um romance capaz de promover no leitor desde momentos de sincero riso, perpassando por sagazes captações de lirismo em meio ao caos, até reflexões sociológicas e políticas, sem cair no meio panfletário, por razão da justa palavra, da justa descrição, mediada por um narrador atento, objetivo, sensível e imerso em seus antigamentes, que embora já passados, são capazes de dialogar de forma simples, direta, e por ora despretensiosa – como numa conversa entre crianças e adultos – com um presente ainda carente de respostas, definições, e diálogos. Diálogos entre camaradas.

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Ndalu de Almeida, mais conhecido por Ondjaki, é um escritor angolano nascido em 1977 que vem ganhando notoriedade internacionalmente. Participou da Um Conto na edição de dezembro de 2011. Tem mais de 15 livros publicados, sendo os de maior destaque Bom Dia Camaradas, de 2001; a novela O Assobiador, de 2002; o livro de poesia Há Prendisajens com o Xão, de 2002; o infantil Ynari: A Menina das Cinco Tranças, de 2004, e Materiais para confecção de um espanador de tristezas, de 2009. Em 2010 ganhou o prêmio Jabuti, na categoria juvenil, com AvóDezanove e o Segredo do Soviético. Além das letras, tem experiência com artes plásticas, teatro e cinema.