Todo amor será mastigado (o camelo, o leão, a criança e seus etecéteras)

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Há muita gente que ainda acredita que os livros físicos têm o potencial de deixar de existir, pelo advento da internet e da cultura digital. Possivelmente entram na mesma linha daqueles que acreditavam no fim do cinema com o surgimento da televisão. Entretanto, o que temos observado hoje é um aumento considerável no número de publicações impressas no Brasil, colocadas no mercado (ou em algum lugar próximo a isso) por pequenas editoras que vêm se destacando no cenário nacional, possivelmente pelas novas possibilidades de edição que existem justamente pelos novos meios técnicos, digitais, como as impressões sob demanda. Este é um cenário fácil de ser observado se notarmos, por exemplo, o número de editoras que concorreram na categoria “Poesia” no último Prêmio Oceanos (antigo Portugal Telecom), que quase se esbarra no número de obras inscritas para tal categoria. Os dados apontam para uma discussão que não é nova, mas que ainda faz sentido ser citada: o número de publicações vem se tornando maior que o número de leitores. Claro que ainda existem leitores, e alguns deles (como eu) busca ter acesso ao maior número possível de livros que são publicados, o que pode resultar num enorme estoque de obras, que são diversas mas, na maioria das vezes, possuem o mesmo tom de qualidade questionável – o que é bem óbvio, já que a demanda aumenta e o tempo para preocupações estéticas, formais e comprometimento com o intelecto do leitor, consequentemente, tende a diminuir. Liubliblablá: mastigações de um camelo, de André Monteiro e Luiz Fernando Medeiros (Bartlebee, 2015) é um livro que, de certo modo, destoa e se destaca neste cenário das publicações por editoras independentes.

Apresentado, na ficha catalográfica, como “Ensaio brasileiro”, o livro não se prende (e não se pretende a isso) a uma classificação fixa, principalmente se pensarmos que André e Luiz Fernando já são conhecidos pelas suas carreiras como poetas, o que nos leva a encontrar um lirismo pulsante (às vezes em versos, por vezes em prosa) perpassando por toda essa obra que se autointitula ensaística:

o camelo aqui mastiga e fala. fala e mastiga.
não mais suporta. não mais se ajoelha.

O camelo aqui vem da imagem das três metamorfoses do espírito, apresentada por Nietzsche em Assim falou Zaratustra: “Vou dizer-vos as três metamorfoses do espírito: como o espírito se muda em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança”. Elemento central do livro, o animal equivaleria à ideia de sua corcunda, como se a corcunda fosse um carregamento de todas as informações e imposições pautadas pela cultura ocidental. Como a figura de um academicista, preso em seu gabinete, cercado de livros, cuja exclusiva ação é carregar o máximo possível das informações dos livros, criando sobre ele uma bagagem monstruosa, uma corcunda enorme e nada digerida. O que os autores apresentam, no entanto, é uma imagem modificada do animal nietzschiano: o camelo aqui mastiga e fala. Enquanto mastiga é também o leão, que critica, que devora, com sua arcada selvagem, o que designa a cultura:

lei de mercado
na maioria dos casos, terminamos
como velhos frustrados franciscanos
querendo dar e receber,
pelo mais, não damos.
pelo menos, recebemos.
um dia, nos daremos para o gasto.

É também a criança, que se desliga (depois de tudo digerido) e começa de novo, do zero, da nova organização possível agora pela visão crítica e pela falta de repressão. Vem justamente daí o título do livro: liubliblablá, quase um balbucio, uma palavra que por enquanto não se enquadra em nenhum sistema simbólico e representativo, como se uma tentativa da criança de entrar no reino político da linguagem, mas desviando-se para o novo, o que brilha. Liubliblablá, gugu-dadá, Dadá.

a baba será tudo no amor
liublablá
liubliblablá

Mastigar pode ser, antes de tudo, tecer – trançar a tecitura, criar o tecido, o texto. O camelo mastiga o texto, isto que Roland Barthes aponta em “A morte do autor” como “um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura”. No livro ajuntam-se, mastiga-se e coabitam presenças como as de Clementina de Jesus, Ismael Silva, Oswald de Andrade e Henry Miller que, antes de ajudarem no crescimento da corcunda do camelo, são devorados pelo leão até chegar nesse lugar onde nada é de um possuidor, onde a autoridade se dissolve e resiste a rede variada de influências.

O próprio sentido de autoria do livro é abalado quando os dois poetas decidem assinar juntos todos os textos. O que traz o livro não são escrituras de André Monteiro, ou escrituras de Luiz Fernando Medeiros, mas uma estrutura em que se encontram as duas, juntas de todas as demais que cruzam o caminho do camelo (do leão, da criança, de seus etecéteras). Evitar este ponto de encontro seria, de acordo com certa passagem do livro, “rechaçar toda a possibilidade de conversa infinita do casal humano, a conversa infinita de dois seres que se atraem pelo afeto”. E é o afeto justamente o elemento que possibilita a união e coexistência de todas as vidas que brotam de Liubliblablá.

(…) o capitalismo não deixa, a moral não deixa. há que estar nos conformes. o corpo conformado a uma só gestão. mastigar e gestar o bolo da cultura. ejetar o que se tornou conforme.

Elemento subversivo, revolucionário, o afeto abala as estruturas do capitalismo e da moral. Não há estrutura social capaz de suportar a violência do encontro não delimitado pelas regras do corpo dócil, por isso o sistema constantemente tenta nos impedir do que pede o desejo. Para isso, então, caminha o leão: mastigando a massa ditada, quebrando as imposições, até que possamos chegar ao espaço livre da linguagem da criança. Nos aponta o livro que devemos quebrar sempre as estruturas, mas com ódio não se quebra nada. O amor, pela sua potência, o amor, pela sua força dos encontros positivos, é o que quebra.

quebrar não é suicidar a coisa
e esperar sua não coisa
quebrar é arranjar nas quebradas
a requebrada música de uma oferenda
não se quebra qualquer coisa de qualquer jeito
quebrar é dar um jeito
de arrancar da coisa mesma
sua coisa outra
como o mar
que se quebra na praia
como o amor
que quebra tudo
e nos multiplica ao infinito
(com ódio não se quebra nada
o ódio endurece corações
endireita músculos
e os torna inquebrantáveis)
haverá amor
que não seja amor
em pedaços?

Entre tantas publicações que nos chegam hoje em dia, e que podem também se acumular como uma grande corcunda, Liubliblablá brilha pela honestidade com que trata os discursos e como constrói o seu próprio; e também por se colocar neste terreno que não busca pra si um certificado último de raiz original, mas que brinca com a linguagem, com a vida e todos os seus desdobramentos e potências.

Planejava neste texto, ainda, uma última nota sobre o livro funcionar como um pequeno manual afetivo de como viver num mundo cada vez mais abarrotado de informações, que nos chegam de todos os lados o tempo todo, mas talvez a melhor escolha seja terminar assoviando Godard:

“somos treinados por meio de filmes norte-americanos a pensar que temos de compreender tudo de imediato. mas isso não é possível. quando você come uma batata, você não entende cada átomo da batata.”

X

Liubliblablá: mastigações de um camelo
André Monteiro e Luiz Fernando Medeiros
Bartlebee
60 páginas

Da arte das armadilhas, de Ana Martins Marques

A poesia contemporânea brasileira vem passando por uma fase promissora (pelo menos acreditamos) e revela diariamente nomes que vêm surgindo na internet e publicados por pequenas editoras. O mais interessante nessa nova jogada é que (de uma forma ou de outra) as publicações e consequentes reverberações fogem do fixo eixo Rio – São Paulo. É o caso da poeta Ana Martins Marques, vencedora por duas vezes do prêmio Cidade de Belo Horizonte de Literatura, que estreou no mercado editorial com seus poemas premiados no livro A vida submarina (Scriptum, 2009). A repercussão de seu primeiro trabalho chamou a atenção do poeta Armando Freitas Filho e expôs Ana aos holofotes do mundo das letras.

Em seu segundo trabalho, Da arte das armadilhas (Companhia das Letras, 2011), Marques retoma alguns temas do livro anterior e se mostra capaz de suportar as expectativas depositadas nela ao longo dos anos. Da arte é um daqueles livros que não se pode ler deitado: talvez sentado, mas às vezes é inevitável dar um pulo, um soco no joelho e gritar: é isso! A mineira dispõe em versos a honesta poesia sentimental contemporânea, que passa por assuntos como abandono, solidão e observações íntimas – como é o caso da primeira parte do livro: “Interiores”, na qual há um movimento duplo de internalização do meio (no caso, a casa e seus arredores) e exteriorização do eu. Pode-se observar este movimento nos poemas que se seguem:

CÔMODA

E dela
o que restou
senão
sobre a cômoda
um par de brincos
que talvez não sejam dela?

TORNEIRA

Quem abre a torneira
convida a entrar
o lago
o rio
o mar

VARAL

Suas camisas
colorem
o vento

*

Seus jeans
atualizam
a paisagem

*

Sua camisa branca
rendida
com
ao fundo
a noite
ampla

“Da arte das armadilhas”, segunda seção do livro, parece manter esse mesmo eu, que agora já busca outros espaços de composição poética, como a mitologia (em poemas como Carta a Safo, Mitológicas, Ícaro (1) e (2) e Penélope). Observa-se poemas já mais preocupados com a forma, que beiram uma metapoesia, mas ainda passando pelo corpo e suas insinuações:

A descoberta do mundo

Procuro alcançar-te
com palavras
com palavras
conhecer-te

como quem
com uma lanterna e um mapa
crê empreender
a descoberta do mundo

levanto-me
estou sozinha no escuro
com dois pés
no cimento frio

(onde estás
no que escrevi?)

A linguagem simples e acessível ajuda na retirada da poesia do pedestal hermético no qual esteve por tanto tempo mantida. Ler os poemas de Ana Martins Marques assemelha-se (até certo ponto) à leitura de uma prosa bem colocada, disposta em versos, mas com uma apuração “teórica” e formal capaz de inseri-la (com excelência) no universo lírico. A máscara vestida nesse livro (ou talvez persona, visto que parece ser um mesmo personagem que se deixa mostrar em todas as páginas) é uma espécie de Penélope (citada diversas vezes, da mesma forma que em A vida submarina) que, cansada de esperar também sai para ver:

Três postais

AMAZONAS

O mundo cheio
vazio

À beira da água
as núpcias da anta
e da vitória-régia

Peixe luminoso
água escura

Na primeira parada do barco
um enxame
de crianças antigas

SÃO PAULO

Depois de um tempo
todas as coisas ficam marcadas
como se estivessem
impregnadas de veneno

Há um tempo em que os lugares
são limpos e novos
abertos como clareiras
mas já não é este o tempo

Sobre cada lugar se sobrepõe
a experiência do lugar
como um selo
num cartão postal

Por exemplo
hoje sempre que sobrevoo
São Paulo
penso que em algum apartamento
desta cidade interminável
você
fumando
de óculos
exerce seu direito
inalienável
de não mais pensar
em mim

BELO HORIZONTE

[1]

Um dia vou aprender a partir
vou partir
como quem fica

[2]
Um dia vou aprender a ficar
vou ficar
como quem parte

Mas ainda é a mesma que fica, na tensão de um Odisseu que pode ou não voltar, confundindo entre poemas lembranças e perda.

Cinema

Encontramos na rua
uma fileira de cadeiras
de um velho cinema
levamos para casa
colocamos na varanda
passamos toda a tarde
bebendo e fumando
assistindo passar
um dia qualquer

 

A partilha
……………………d’après Joan Brossa, Pequena apoteose

Eu
e você

ao menos este poema
dividimos
meio a meio

Otávio Campos

  • Da arte das armadilhas
  • Ana Martins Marques
  • Companhia das Letras, 2011, 86 páginas

Livros que você precisa ler em 2013

livros que precisa ler

O ano mal começou e o mercado editorial já chega com algumas promessas. A Companhia das Letras já anunciou que esse será o ano das narrativas ficcionais brasileiras, prometendo fechar 2013 com um número de, mais ou menos, 16 romances produzidos em terras tupiniquins. A Intrínseca também prepara seu primeiro lançamento neste circuito e a Cosac Naify tem planos de aumentar sua frequência de romances brasileiros. Com todas essas notícias, nós selecionamos alguns dos prometidos que, com certeza, figurarão nas nossas listas de livros lidos em 2013. São eles:

Divórcio, de Ricardo Lísias. Será lançado pela Alfaguara, ainda sem data prevista. É promessa por conta, é claro, das polêmicas da Granta e da capacidade que conhecemos do autor de O céu dos suicidas.

Edifício Midori Filho, de Andrea del Fuego. Cara, ela escreveu Os Malaquias e teve cinco grandes editoras no pé dela e recusou oferta de quatro para publicar o novo romance com a Companhia das Letras. É de se esperar menos?

Rabo de Baleia, de Alice Sant’Anna. Bem, a Alice a gente já conhece, né? Pelo título do livro, acreditamos que essa lindeza que foi publicada na nossa edição de aniversário (quadro 3, e você pode ver aqui) estará presente nesse novo número da coleção de poesia da Cosac Naify. (E ainda podemos tirar onda que publicamos primeiro)

Desde que eu te amo sempre, de Cecilia Giannetti. Mais um da coleção “Amores Expressos” da Companhia das Letras. Segundo a autora em uma conversa recente que tivemos, o livro já está pronto há um bom tempo e estava tendo problemas para ser publicado. Mas parece que desse ano não passa e, enfim, conheceremos o sucessor de Lugares que não conheço, pessoas que nunca vi. Ah, a gente ainda teve a oportunidade de ouvir a autora lendo um trecho do romance e, sim, é bom.

O novo livro do Chico Buarque. Esse aí não precisa falar nada. Não tem título ainda e a Companhia não sabe se o autor/compositor/deus vai entregar o romance esse ano. Mas mantemos os dedos cruzados e esperamos fechar 2013 com algo, se possível (é possível?), melhor que Leite derramado.

Nossa parceira, Laura Assis, produtora editorial da Aquela Editora, em uma conversa informal (via Facebook), contou pra gente quais são seus livros mais aguardados desse ano:

Faíscas, de Carol Bensimon (Companhia das Letras)

Digam a Satã que o recado foi entendido, de Daniel Pellizzari (Companhia das Letras)

A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves, de Joca Reiners Terron (Companhia das Letras)

Distância, de Otávio Campos (Aquela Editora) – aí a gente aproveita e faz aquela propaganda do autor e da editora que, é claro, não podia faltar.

Trovadores elétricos, de Anderson Pires (Aquela Editora) – este último já está com lançamento previsto para o dia 9 de março e o booktrailer você confere agora:

Bom, nosso objetivo agora é ter, durante o ano todos esse livros em mãos e compartilhar com nossos leitores aquelas famosas resenhas, de muito bom gosto e com técnicas super apuradas. Tá esperando algum livro e ele não está aqui? Deixe nos comentários.

Uma edição. Um colaborador. Um livro

Mais um mês e mais uma edição. Como de praxe, aí vai a lista de livros indicados e comentados  pelos colaboradores de dezembro. Se interessou por algum? Clica no link que a gente pesquisou o melhor preço  na Estante Virtual.
  • Alice Monnerat está lendo  e indica A Carta Roubada e Outras Histórias de Crime e Mistério, de Edgard Allan Poe. “É meu segundo livro do Poe, logo em seguida do primeiro, que além de ter me prendido como há muito um livro não fazia, me conquistou pelo tom psicológico e irônico do terror presente nas histórias. Dá aquela vontade de ler trechos do livro pra todo mundo.”
  • Ondjaki indica O Silêncio Tange o Sino, de Mariana Botelho. “É um livro de estreia muitíssimo bom de uma (nova) poeta brasileira. Poesia simples, muito concentrada mas cheia de força e de vida. Certamente um dos novos nomes da literatura brasileira.”
  • Anita Assis acaba de ler e indica O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. “Um clássico da literatura mundial, denso e sempre atual.”
  • Lucas Viriato indica Sandman, de Neil Gaiman. ” História em quadrinho é muito legal. Neil Gaiman é o cara!”
  • Danilo Lovisi acaba de ler indica Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, de Clarice Lispector. “Quando acabei de ler eu estava em outro lugar que não aqui. Um livro que te move, definitivamente. Um marco na literatura brasileira e na existência de qualquer leitor.”
  • Renan Duarte indica Os Vagabundos Iluminados, de Jack Kerouack. “O livro é uma viagem por um mundo possível de beleza na simplicidade das coisas; a felicidade na paisagem de uma montanha, na contemplação dos encontros, na festa, nos amigos, na meditação sincera. E, sobretudo, o desprendimento do que nunca foi importante de verdade, embora as pessoas sempre insistem em dizer que são. “
  • Tiago Rattes indica Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. “Desde moleque a mineiridade me perseguia. “Grande Sertão” foi imprescindível na busca dessa identidade, e da compreensão dessa diversidade que é o estado onde nasci e escolhi viver para sempre. A linguagem de Rosa foi fundamental para um exercício de consciência de linguagem em minha prática literária. Os valores culturais e sociais que se estendem ao longo do livro “Deus” “Diabo” “Bem” “mal” aparecem na forma de uma dialética popular, rejeitando os maniqueísmos tão recorrentes nos tempos de hoje. Os personagens complexos serviram para eu comrpeender pessoas, que ao longo de minhas viagens pelo estado, me parecia tão simples, mas que na prática eram esse universo de coisas e vida, que Guimarães Rosa soube tão bem explicar.”