Edimilson de Almeida Pereira (n.1963) é um poeta e ensaísta natural de Juiz de Fora, Minas Gerais. Estreou com Dormundo (D’Lira, 1985) e publicou, dentre outros, os livros Zeosório blues (2002), Lugares ares (2003), Casa da palavra (2003), As coisas arcas (2003) e Homeless (2010). Seu trabalho já foi traduzido e publicado na Inglaterra, na Alemanha, na Itália, na França, na Espanha e nos Estados Unidos. Os poemas a seguir fazem parte do livro inédito Qvasi: segundo caderno a ser publicado pela Editora Patuá ainda este ano.
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LIVRO DO SOFRIMENTO
Por vivê-lo tempo não há
para escrevê-lo.
E o escrito é sinal de menos
a rondar
a carne e os ossos.
O que se pensa escrever
não será sofrimento,
pois o pensado
tira-lhe o corno mais agudo.
Um animal
se desfaz na garra de outro.
Ambos purgam,
entre arminhos, sua herança.
O livro safa-se
incompleto, apesar da gravura
que na capa
sugere uma obra de mérito.
Tem-se o corpo
de um homem (sua idade?)
no círculo:
quatro forças o animam, mas
também
o dividem: será um abraço
ou um grito
que sob nenhuma paisagem
o trazem à cabeceira
deste outro, entre a vida
e a morte?
Livro honesto, que não se dá
e ainda assim
o recebemos, assinar um
de seus capítulos
é como seguir na mata
um bugio.
Antes que o leiamos
sob a máscara
de rei ou peregrino, ele nos
lê. Pausa sediciosa.
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HEITOR,
domador de cavalos. Filho ilegítimo, herdou a sanha
de render o estribo.
A mãe exata, sem sol. Um homem arma o galinheiro.
Heitor, o herdeiro tira
os arreios da vida, em sua selva o mais veloz cavalo
é lento,
fato que um herdeiro não suporta: prefere as patas
contra o peito, o hematoma
em que um mapa, com todos os territórios, se forma.
O homem amarra
telhas para o vento que nunca assaltará o galinheiro.
A mãe, à porta, não
se move, quase tronco, folha quase de uma floresta
que há muito não
se incendeia. Heitor, domador e cavalo, vara a cerca
nessa noite, irmã
de outra em que o pai fez saltar de sua alta finestra
a mãe
e desgarraram sem reza e sem promessa, vassalos
apenas do risco.
O homem sonha galinhas antes de cerrar à taramela
seu trabalho.
Heitor, domador de cavalos, precipita como se uma
grécia lhe roesse os ossos.
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BRUIT
O queixada varou a cerca, o arame
ara-lhe o pêlo.
Armadilha contra os celerados.
O queixada arma as presas a foder
o tormento.
Um tirano, para defender sua prole,
cravou
na mata o ninho de morte.
O queixada gira
a raiva
pelas arcadas. Se pudesse,
peguntaria onde o pai-de-família
tirou esse
áspero que pune além do conflito.
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O MORCEGO
desafia a natureza para assaltar, durante o dia,
o bebedouro de outro pássaro.
Avança, sem apreensão de que o escorrassem
(bicho com a treva
às costas). É um direito somar-se à comida,
não importa
a diferença entre os estômagos. Vem, porque
se não ele, outro se
ocupa em justificar a repentina abundância.
Uma porção da noite
desce com o morcego – luminária às avessas.
Capturá-lo à luz
revela na varanda uma rodoviária com sacas
de grãos, chapéus
e orações entre os corpos que se apressam.
E comem todos
da passagem, o alimento maior a repartir-se.
O morcego salta
a divisão das horas para convidar ao sangue
quem se der a pássaro.
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