Um Conto #21 | Literatura Mexicana Contemporânea

13000088_1161826050535385_343668052141585253_n

A poeta Paula Abramo na apresentação durante o Eco  | Foto: Eduardo Malvacini

Como aponta o poeta e tradutor Fred Spada, na apresentação do volume que agora apresentamos, ainda é notável o descaso com que o mercado editorial brasileiro enxerga a literatura dos países hispano-americanos. “Ler em português a poesia latino-americana, em especial a contemporânea, tampouco é tarefa fácil para quem a busque em livrarias e bibliotecas (…); hoje são as revistas especializadas, os sites e os blogs internet afora que nos dão a ver esse diálogo tão fundamental para se pensar a América Latina”.

Com a proposta de se pensar a produção literária da América Latina, a Um Conto lança  sua primeira edição temática, dedicada à Literatura Mexicana Contemporânea. Os textos publicados  neste número são de poetas atuais, que estão produzindo agora, alguns deles ainda sem tradução para o português. Para o lançamento da revista, convidamos Fred Spada, responsável pelas traduções, para apresentar alguns dos textos, acompanhados da presença em vídeo dos respectivos poetas mexicanos. O evento ocorreu durante o Eco – Performances Poéticas, e o registro em vídeo pode ser acessado no canal do tradutor.

13010605_1161828830535107_2521937965542409747_n

Foto: Eduardo Malvacini

A revista foi publicada em duas versões: a clássica, com as dobras e o texto em português, e em edição bilíngue com acabamento grampo-canoa, publicado pela Editora Matinta. Os dois formatos podem ser encomendados inbox através da nossa página no Facebook. Uma edição virtual deste número pode ser encontrada no link abaixo e no canto superior direito aqui do blog.

Boa leitura.

Lançamento: Um Conto #21

convi

Depois de um longo período em silêncio, voltamos a editar nossa revista impressa. Para a edição número 21, preparamos uma seleção de 7 autores da recente literatura mexicana, com pouca ou nenhuma tradução no Brasil. Os 6 poemas e o conto que integram esse número foram traduzidos do espanhol pelo poeta Fred Spada, também responsável pela apresentação do volume em sua edição bilíngue, publicado pela Matinta Editora

Na próxima quinta-feira, dia 14/04, a revista será lançada oficialmente no Eco Performances Poéticas, com apresentação das traduções por Fred Spada, acompanhado de leituras em vídeo dos correspondentes mexicanos.

Em breve disponibilizaremos a edição online da revista e indicaremos pontos de venda virtuais e físicos para a edição impressa.

Os textos que integram a Um Conto #21 são: “Edith lo ama, Monsieur Gainsbourg” / “Edith o ama, Mounsieur Gainsbourg”, de Xitlalitl Rodríguez Mendoza; “El origen de la literatura” / “A origem da literatura”, de Alejandro Albarrán; “Éramos ratones,” / “Éramos ratos,”, de Óscar de Pablo; “[No nos preguntaron.]” / “[Não nos perguntaram]”, de Julieta Gamboa; “Presentación del panadero anarquista Bórtolo Scarmagnan” / “Apresentação do padeiro anarquista Bórtolo Scarmagnan”, de Paula Abramo; “[Dice]” / “[Diz]”, de Luis Felipe Fabre; e “Precipitación” / “Precipitação”, de Tania Carrera.

Abaixo, “Precipitación” em vídeo, produzido pela Plataforma Contemporánea de Arte + Cultura, na voz da própria Tania Carrera.

Todo amor será mastigado (o camelo, o leão, a criança e seus etecéteras)

zarathustra_by_islingt0ner-d43f73x

Há muita gente que ainda acredita que os livros físicos têm o potencial de deixar de existir, pelo advento da internet e da cultura digital. Possivelmente entram na mesma linha daqueles que acreditavam no fim do cinema com o surgimento da televisão. Entretanto, o que temos observado hoje é um aumento considerável no número de publicações impressas no Brasil, colocadas no mercado (ou em algum lugar próximo a isso) por pequenas editoras que vêm se destacando no cenário nacional, possivelmente pelas novas possibilidades de edição que existem justamente pelos novos meios técnicos, digitais, como as impressões sob demanda. Este é um cenário fácil de ser observado se notarmos, por exemplo, o número de editoras que concorreram na categoria “Poesia” no último Prêmio Oceanos (antigo Portugal Telecom), que quase se esbarra no número de obras inscritas para tal categoria. Os dados apontam para uma discussão que não é nova, mas que ainda faz sentido ser citada: o número de publicações vem se tornando maior que o número de leitores. Claro que ainda existem leitores, e alguns deles (como eu) busca ter acesso ao maior número possível de livros que são publicados, o que pode resultar num enorme estoque de obras, que são diversas mas, na maioria das vezes, possuem o mesmo tom de qualidade questionável – o que é bem óbvio, já que a demanda aumenta e o tempo para preocupações estéticas, formais e comprometimento com o intelecto do leitor, consequentemente, tende a diminuir. Liubliblablá: mastigações de um camelo, de André Monteiro e Luiz Fernando Medeiros (Bartlebee, 2015) é um livro que, de certo modo, destoa e se destaca neste cenário das publicações por editoras independentes.

Apresentado, na ficha catalográfica, como “Ensaio brasileiro”, o livro não se prende (e não se pretende a isso) a uma classificação fixa, principalmente se pensarmos que André e Luiz Fernando já são conhecidos pelas suas carreiras como poetas, o que nos leva a encontrar um lirismo pulsante (às vezes em versos, por vezes em prosa) perpassando por toda essa obra que se autointitula ensaística:

o camelo aqui mastiga e fala. fala e mastiga.
não mais suporta. não mais se ajoelha.

O camelo aqui vem da imagem das três metamorfoses do espírito, apresentada por Nietzsche em Assim falou Zaratustra: “Vou dizer-vos as três metamorfoses do espírito: como o espírito se muda em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança”. Elemento central do livro, o animal equivaleria à ideia de sua corcunda, como se a corcunda fosse um carregamento de todas as informações e imposições pautadas pela cultura ocidental. Como a figura de um academicista, preso em seu gabinete, cercado de livros, cuja exclusiva ação é carregar o máximo possível das informações dos livros, criando sobre ele uma bagagem monstruosa, uma corcunda enorme e nada digerida. O que os autores apresentam, no entanto, é uma imagem modificada do animal nietzschiano: o camelo aqui mastiga e fala. Enquanto mastiga é também o leão, que critica, que devora, com sua arcada selvagem, o que designa a cultura:

lei de mercado
na maioria dos casos, terminamos
como velhos frustrados franciscanos
querendo dar e receber,
pelo mais, não damos.
pelo menos, recebemos.
um dia, nos daremos para o gasto.

É também a criança, que se desliga (depois de tudo digerido) e começa de novo, do zero, da nova organização possível agora pela visão crítica e pela falta de repressão. Vem justamente daí o título do livro: liubliblablá, quase um balbucio, uma palavra que por enquanto não se enquadra em nenhum sistema simbólico e representativo, como se uma tentativa da criança de entrar no reino político da linguagem, mas desviando-se para o novo, o que brilha. Liubliblablá, gugu-dadá, Dadá.

a baba será tudo no amor
liublablá
liubliblablá

Mastigar pode ser, antes de tudo, tecer – trançar a tecitura, criar o tecido, o texto. O camelo mastiga o texto, isto que Roland Barthes aponta em “A morte do autor” como “um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura”. No livro ajuntam-se, mastiga-se e coabitam presenças como as de Clementina de Jesus, Ismael Silva, Oswald de Andrade e Henry Miller que, antes de ajudarem no crescimento da corcunda do camelo, são devorados pelo leão até chegar nesse lugar onde nada é de um possuidor, onde a autoridade se dissolve e resiste a rede variada de influências.

O próprio sentido de autoria do livro é abalado quando os dois poetas decidem assinar juntos todos os textos. O que traz o livro não são escrituras de André Monteiro, ou escrituras de Luiz Fernando Medeiros, mas uma estrutura em que se encontram as duas, juntas de todas as demais que cruzam o caminho do camelo (do leão, da criança, de seus etecéteras). Evitar este ponto de encontro seria, de acordo com certa passagem do livro, “rechaçar toda a possibilidade de conversa infinita do casal humano, a conversa infinita de dois seres que se atraem pelo afeto”. E é o afeto justamente o elemento que possibilita a união e coexistência de todas as vidas que brotam de Liubliblablá.

(…) o capitalismo não deixa, a moral não deixa. há que estar nos conformes. o corpo conformado a uma só gestão. mastigar e gestar o bolo da cultura. ejetar o que se tornou conforme.

Elemento subversivo, revolucionário, o afeto abala as estruturas do capitalismo e da moral. Não há estrutura social capaz de suportar a violência do encontro não delimitado pelas regras do corpo dócil, por isso o sistema constantemente tenta nos impedir do que pede o desejo. Para isso, então, caminha o leão: mastigando a massa ditada, quebrando as imposições, até que possamos chegar ao espaço livre da linguagem da criança. Nos aponta o livro que devemos quebrar sempre as estruturas, mas com ódio não se quebra nada. O amor, pela sua potência, o amor, pela sua força dos encontros positivos, é o que quebra.

quebrar não é suicidar a coisa
e esperar sua não coisa
quebrar é arranjar nas quebradas
a requebrada música de uma oferenda
não se quebra qualquer coisa de qualquer jeito
quebrar é dar um jeito
de arrancar da coisa mesma
sua coisa outra
como o mar
que se quebra na praia
como o amor
que quebra tudo
e nos multiplica ao infinito
(com ódio não se quebra nada
o ódio endurece corações
endireita músculos
e os torna inquebrantáveis)
haverá amor
que não seja amor
em pedaços?

Entre tantas publicações que nos chegam hoje em dia, e que podem também se acumular como uma grande corcunda, Liubliblablá brilha pela honestidade com que trata os discursos e como constrói o seu próprio; e também por se colocar neste terreno que não busca pra si um certificado último de raiz original, mas que brinca com a linguagem, com a vida e todos os seus desdobramentos e potências.

Planejava neste texto, ainda, uma última nota sobre o livro funcionar como um pequeno manual afetivo de como viver num mundo cada vez mais abarrotado de informações, que nos chegam de todos os lados o tempo todo, mas talvez a melhor escolha seja terminar assoviando Godard:

“somos treinados por meio de filmes norte-americanos a pensar que temos de compreender tudo de imediato. mas isso não é possível. quando você come uma batata, você não entende cada átomo da batata.”

X

Liubliblablá: mastigações de um camelo
André Monteiro e Luiz Fernando Medeiros
Bartlebee
60 páginas

Poemas inéditos de Edimilson de Almeida Pereira

ed

Edimilson de Almeida Pereira (n.1963) é um poeta e ensaísta natural de Juiz de Fora, Minas Gerais. Estreou com Dormundo (D’Lira, 1985) e publicou, dentre outros, os livros Zeosório blues (2002), Lugares ares (2003), Casa da palavra (2003), As coisas arcas (2003) e Homeless (2010). Seu trabalho já foi traduzido e publicado na Inglaterra, na Alemanha, na Itália, na França, na Espanha e nos Estados Unidos. Os poemas a seguir fazem parte do livro inédito Qvasi: segundo caderno a ser publicado pela Editora Patuá ainda este ano.

.

LIVRO DO SOFRIMENTO

Por vivê-lo tempo não há
para escrevê-lo.

E o escrito é sinal de menos
a rondar

a carne e os ossos.
O que se pensa escrever

não será sofrimento,
pois o pensado

tira-lhe o corno mais agudo.
Um animal

se desfaz na garra de outro.
Ambos purgam,

entre arminhos, sua herança.
O livro safa-se

incompleto, apesar da gravura
que na capa

sugere uma obra de mérito.
Tem-se o corpo

de um homem (sua idade?)
no círculo:

quatro forças o animam, mas
também

o dividem: será um abraço
ou um grito

que sob nenhuma paisagem
o trazem à cabeceira

deste outro, entre a vida
e a morte?

Livro honesto, que não se dá
e ainda assim

o recebemos, assinar um
de seus capítulos

é como seguir na mata
um bugio.

Antes que o leiamos
sob a máscara

de rei ou peregrino, ele nos
lê. Pausa sediciosa.

.

HEITOR,

domador de cavalos. Filho ilegítimo, herdou a sanha
de render o estribo.

A mãe exata, sem sol. Um homem arma o galinheiro.
Heitor, o herdeiro tira

os arreios da vida, em sua selva o mais veloz cavalo
é lento,

fato que um herdeiro não suporta: prefere as patas
contra o peito, o hematoma

em que um mapa, com todos os territórios, se forma.
O homem amarra

telhas para o vento que nunca assaltará o galinheiro.
A mãe, à porta, não

se move, quase tronco, folha quase de uma floresta
que há muito não

se incendeia. Heitor, domador e cavalo, vara a cerca
nessa noite, irmã

de outra em que o pai fez saltar de sua alta finestra
a mãe

e desgarraram sem reza e sem promessa, vassalos
apenas do risco.

O homem sonha galinhas antes de cerrar à taramela
seu trabalho.

Heitor, domador de cavalos, precipita como se uma
grécia lhe roesse os ossos.

.

BRUIT

O queixada varou a cerca, o arame
ara-lhe o pêlo.
Armadilha contra os celerados.

O queixada arma as presas a foder
o tormento.

Um tirano, para defender sua prole,
cravou
na mata o ninho de morte.

O queixada gira
a raiva
pelas arcadas. Se pudesse,

peguntaria onde o pai-de-família
tirou esse
áspero que pune além do conflito.

.

O MORCEGO

desafia a natureza para assaltar, durante o dia,
o bebedouro de outro pássaro.

Avança, sem apreensão de que o escorrassem
(bicho com a treva

às costas). É um direito somar-se à comida,
não importa

a diferença entre os estômagos. Vem, porque
se não ele, outro se

ocupa em justificar a repentina abundância.
Uma porção da noite

desce com o morcego – luminária às avessas.
Capturá-lo à luz

revela na varanda uma rodoviária com sacas
de grãos, chapéus

e orações entre os corpos que se apressam.
E comem todos

da passagem, o alimento maior a repartir-se.
O morcego salta

a divisão das horas para convidar ao sangue
quem se der a pássaro.

 

.

.

André Capilé

cap

André Capilé (n. 1978) nasceu em Barra Mansa, cidade do interior sul fluminense. Graduou-se em Filosofia na UFJF. Mestre em estudos literários,  pela PUC-RIO,  onde cursa atualmente doutorado em “Literatura,  Cultura e Contemporaneidade”. Co-fundador e ex-organizador do ECO — performances poéticas. Atua como colaborador na Editora TextoTerritório em suas diversas frentes de trabalho. Publicou, em 2008, o livro Dois (Não Pares), em parceria com Carolina Barreto, pela Anome e Funalfa Edições; em 2010 editou a plaquette ZANGARREIO;  seguem-se as publicações de rapace (2012), pela editora TextoTerritório e balaio (2014), pela coleção megamini da 7letras. Prepara, para esse ano (2015), a publicação de chabu e troco da passagem, ambos pela editora TextoTerritório. Publicou, em 2015, “A canção de amor de J. Pinto Sayão”, tradução de “The love song of J. Alfred Prufrock”, de T. S. Eliot, pela Edições Macondo, em sua nova coleção: Herbert Richers.

Os poemas a seguir são inéditos.

.

5

ok ir até onde o passo dá pé mas
que é que há de comer do córrego?

ok ir com a correnteza mas
como se nem os peixes bóiam?

ora da cartilha do ensina a pescar
a reza sabem somente os piscinas

não sabem ainda de que solas são feitos
os do lado de lá da insolação

do barro vermelho?

.

III

vai

com teus trapos
ao malogro

joga das valises
o golpe do paco

em galope de feira
o mole do vagabundo

emula a fala ordinária
de dar giras à mímica

(sem ter do ambulante
o três por um da sintaxe

não pechinche o ritmo
a rua não dá desconto)

.

MAVAMBO

faz roda, kamunan — vai beber da cachaça,
o mel; farinha e dendê, melanja : mavîle.
gargalha — transtorna o sorriso. não redunda
em caralho, a foda; e o barro, o mais metonímia.
hermes, o do pinto menor, nem para a entrada.
o divórcio entre o costureiro e o alfaiate.
senta no formigueiro e a cabeça tropica
no céu. não se dá com porrete por moral
— e mais : desdenha dos corcéis de carrossel.
mensageiro volante do destino — corre
caminho e encruzilhada — o senhor, giramundo
das mais largas molduras, que dá por início
o que começa e começa de novo, veste
a tabatinga e vai dar curso à existência.

.

FÉRIAS PASSADAS

não te vejo por aqui faz
algum tempo. como você
vai? espero que bem. talvez
não se recorde de nós; falo
daquela vez em que estivemos
juntos. lembra quando pisávamos
as poças frias, naqueles dias
que pareciam não acabar
[tão logo, quanto um picolé
mordido por uma criança
melando cada um dos dedos]?
não? eu te entendo. tá tranqüilo.
da vida leva o quanto pesa.
bagagens correm com o rio.

.

APÊNDICE
para Ismar

moído, de verdade. mas como sou carrancudo
pensando, agora por do corte de escrever
umas belezas aí, é que vem: se tudo for de pena,

o microfone aberto da minha vida volta
às parcas com os que não fazem questão dela.

—————————————-gosta de mim?

se pertença minha, a benevolência — um bem
que tenho evitado —, tomo teu nome e fazemos
um filho, pode ser? à criança será dada força

— e será má fama (vamos revirar o cinema?).
pausa, breve, para o recado dos organizadores.

comprem a singela da gávea que dá
fundos à penúltima da coleção.

agora é direto com vocês dividindo
a sombra de um mundo novo. bem vindo

à noite de logo mais. se quiser furar
a fila, atenda ao termo do convite:

traje, apenas.

eu te encontro fôlego. não há lastro pra mim,
pois que caí aqui da janela e vem daí que me
interessa, mais, o que a cada vez tu faz melhor.

—————–foi uma bela tarde em kon mei.

imediatamente anteriores aos de cima,
que de andar na areia fofa, dependendo
da coorte de passear por aí, foi bem óbvio
que não era tão de boa um deus nos livre

urgindo a exigência de um alívio. não
me disseram, as loucas, tocando meu rim,
enquanto esperava o ano passar desperdício?
era um quê da vida que falavam? ah me dera.

ficou mais a pressa medida dos sapos.
e este é esse verso que perde suas armas.
e se já não é, ele disse: acabou! acabou!
por vezes o que falta é essa perna aí.
e era o fim do pavio, o fio da boina.
e se já não sabe, está bem sem dúvida.

ela é quem vai ler no arranhão. casal
pronto & acabado. só isso. o resto é
puro desserviço — o calo cativo
de esquecer que essas frases pegam mal.
eu, de cá, acho um grande despropósito
ser revistado a pente fino antes
de entrar de férias na escolinha. basta
de brinquedo novo no repertório.
serão dados amigos jovens. saltos
pra quem espera a vez nos trampolins.
já me afastei com medo do convite —
o que dá um interessante efeito,
confesso — para a vida no divino:
lenha e matéria gasta até o fim.

(a sumidade esclarecida se perdeu.
foi contra as recomendações do seguimento.
achando umas paradas muito estilo severo,
abandonou-se às suas rotinas de hábito).

começou a ficar difícil. já deu ruim.
ser si mesmo é um grande transtorno. bem dito.
aqui gente, por favor, tenham modos. fiquem
bem com os teus. foi dada a recomendação.

uns poucos traços do de sempre
e sigo rindo. não precisa
agradecer imenso, não.
tá tudo certo entre nós, sim?
respira em paz. esquece a merda

toda em que nos metemos juntos.
foi chato à vera, você sabe.
que a terra lhe seja bem leve.

da série de epitáfios pífios que escrevi,
aqui deixei: “vem cá, continuo tentando?”

.

Diego Moraes

diego

Diego Moraes é autor dos livros A fotografia do meu antigo amor dançando tango e A solidão é um deus bêbado dando ré num trator (Editora Bartlebee) e publicará até o fim de 2015 Um Bar fecha dentro da gente (Editora Douda Correria) e Eu já fui aquele cara que comprava vinte fichas e falava “eu te amo” no orelhão (Editora Corsário-Satã).  Os poemas a seguir são inéditos em livro.

 

árvore da vida

A árvore que seu avô desenhava num caderno
Entre delírios da segunda guerra
E saudades roxas da sua avó
O sorriso da tua irmã que morreu num aborto
Mal feito numa clínica clandestina em Copacabana
Seu pai entrando e saindo de clínicas de recuperação
Tratando sem sucesso o alcoolismo que derrubou Charles
Bukowski e Raymond Carver
A escopeta enferrujando dentro do corcel esquecido
Na garagem da casa de campo e o microscópio
Vendido por mixaria num sebo para pagar lanche e xerox
Da sua faculdade de psicologia
E seu pensamento em mim sendo levado
Como ondas que empurram tartaruguinhas para beira da praia
Seu desejo de cortar os pulsos dentro de uma banheira escutando Maysa
E minhas cartas cheias de erros otográficos que não curou
O câncer do esportista que virou notícia no jornal nacional
Todas as coisas desabam sobre Manaus
Todas as coisas desabam sobre o céu
Cor de chumbo que não vinga ninguém
Só nos resta essas coisas pequenas
Esses flashes relapsos
Que os navios carregam na última partida
Seu nome sangra na minha memória.

 

folião

quando o lirismo
começa a capengar
quando o lirismo
começa a falhar
quando o lirismo
escapa dos olhos
e não escorrem
nas minhas mãos
quando o lirismo
fica preso
no meu peito
eu cheiro tua
calcinha esquecida
no armário
e abro um sorriso
de folião
cheirando lança-perfume
no carnaval.

 

Van Gogh

Estou aqui
a milhares de quilômetros
com um siso inflamado
e o corpo latejando
com um poema medonho de lindo
da Hilda Hilst na cabeça
E você pula na minha tela do Facebook
sem ser convidada
numa foto patética
seguindo o trio elétrico
da Ivete Sangalo em Salvador.
Agora te odeio muito mais
daria tudo pra tirar seu nome dos meus livros
e do meu cacete
mas isto é
quase impossível
Vai doer
Vai sangrar
Vou apenas excluir nosso amigo em comum
que trabalha restaurando
quadros falsificados de Van Gogh
num galpão fedorento em Pindamonhangaba.

 

Richard Gere

15 horas. O sol estala no asfalto. Uma senhora tropeça numa tampa de fossa e cai espalhando frutas. Dois trombadinhas correm para roubar as sobras. Na lei do cão quem não rouba morre de fome. Do outro lado da rua um galã com pinta de Richard Gere passando férias na Paris dos Trópicos acende um cigarro e começa a sorrir num terno azul. Todo idiota que se acha artista se refere à Manaus como Paris dos Trópicos. Não faço ideia de onde fica Paris. Duas bolotas de suor na sovaqueira do Richard Gere. Faz sinal para uma índia lambendo um cascalhão de morango. Sorri, sorri, sorri a ponto de entortar o poste que segura um cartaz da sessão do descarrego da igreja universal. A índia atravessa a rua. Cochicha no ouvido do sósia do ator. Richard Gere é o pior ator do mundo. Dois beijinhos no pescoço da puta. Um caminhão perde o freio e invade a padaria. Nuvem de poeira e gritaria. Puxo 20 reais do bolso e penso em comprar uma garrafa de conhaque. Manaus é um quadro de Salvador Dalí.

 

1998

Minha mãe jogou minhas malas na varanda. O rosto do meu padastro sangrando dos socos que acumulei de séculos de perseguição religiosa. Reginaldo Rossi embalava o bêbado do meu vizinho. “a porta da rua é serventia da casa” ela disse com o semblante triste. Com o pesar de nuvens carregadas anunciando o temporal. Com os olhos brilhando de compaixão de arrancar telhas de um barraco assentado numa invasão do MST. “Vou morar na rua” Eu disse chutando tampinhas de refrigerante. O choro da cantareira seca que não vinha naquele auê de mulher que não pari o filho bastardo no dia certo. “vou sentar aqui ao lado desse mendigo que cheira a porto com lepra”. Da cabeça dele voaram pássaros. Voaram folhas amareladas de um livro velho. Voaram coisas lindas escritas por náufragos do século dezesseis. Estou com fome. Esqueci algarismos romanos. Esqueci minha identidade. O mendigo acende um derby. Me passa pra dar um trago. As estrelas piscam com mais intensidade. “Bem-vindo ao inferno dos poetas” ele disse antes de dormir. Deus não existe. Só existem mendigos profetas.

.

A poesia salva

Em 23 de abril de 1849 Dostoiévski foi preso e torturado a mando do Czar e chorou lendo os salmos da Bíblia. Em 1867 um poeta inglês morreu afogado tentando atravessar o canal da mancha carregando sonetos para uma prostituta francesa. Em 1315, no auge da crise da fome na Europa, uma escritora obscura escreveu seu último poema e decepou o próprio braço e arrancou um pedaço da bunda para dar de comer aos filhos famintos. Em 1968 Waly Samolão sentiu o peso do amor e escreveu “Vapor Barato” com Jards Macalé. Em 2098, o último negro africano do planeta escreverá um poema tão lindo que desativará a bomba atômica. A poesia é antibiótico para as desilusões da vida. O consolo dos perseguidos e descontentes. A poesia salva.

Laís Corrêa de Araújo

scrapeenet_sepia_20090529012432kW1S

Laís Corrêa de Araújo (1928 – 2006) foi uma poeta, crítica, tradutora e jornalista mineira. Estreou com o livro de Caderno de poesia (1951), dando início a uma considerável produção poética, seguido de O signo e outros poemas (1955), Cantochão (1967), Maria e companhia (1983), Decurso de prazo (1988) e Pé de página (1995). Publicou ainda Murilo Mendes: Ensaio Critico, Antologia e Correspondência, obra marcada pelo seu diálogo com o poeta. Foi uma das fundadoras do Suplemento Literário de Minas Gerais, assumindo, na década de 60, o cargo de membro-fundador de redação do jornal, ao lado de Murilo Rubião e Ayres da Matta Machado Filho.

Uma das principais vozes da poesia feminina de Minas Gerais, Laís Corrêa de Araújo foi a única mulher presente na Semana de Poesia de Vanguarda, realizada em Belo Horizonte em agosto de 1963, reunindo integrantes do movimento da Poesia Concreta e da revista Tendência. Ao lado de Affonso Ávila, Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari, Benedito Nunes e Luiz Costa Lima, discutiam a articulação de uma frente ampla de poesia de vanguarda que pudesse conciliar proposta de inovação e experimentação estéticas com um programa de intervenção crítica na realidade nacional.

Segundo a crítica Maria Esther Maciel, no ensaio presente em Inventário, obra que reúne poemas publicados em livro entre 1951 e 2002 (Editora UFMG, 2004), a dicção poética de Laís nunca se confinou ao horizonte do que se convencionou chamar de poesia feminina, o que não indica, entretanto, um alheamento estético da poeta a questões relativas à sua experiência enquanto mulher. “Pelo contrário, temas relacionados ao corpo, ao desejo, à memória e ao cotidiano familiar são recorrentes em sua poesia, só que atravessados pelos movimentos da ironia, da metalinguagem, da experimentação de formas e da lucidez crítica”.

.

Poemas de Laís Corrêa de Araújo

 

Marca

Uma ferida é
e me causa nojo
espalha um soro acre
em minha face
de vergonha
Eu me envergonho pois,
sempre há a ferida
embora não doa nada
não doa mais a cicatriz
antiga e invisível
sob o pó do tempo —
é uma ferida sempre
e exala ocre cheiro
do desgosto e desgaste.

 

Auto-retrato

O que eu era fui
fluída fugidia fumaça
fui e era
não ao perfeito ser

Vislumbro o que fui
ou só vislumbre o outro é
ostensiva fragmentação
de bem moldada forma

no barro adâmico
de sonho e sono fui
derrapante à erosão
era fui ser não sei

a chuva corre em mim
esta que era, fui
brasa evaporada
sob as gotas do medo

 

Acerto final

De que valeu ter sido mudo
escudo baço crispado
e agora surdo surdir
esconso em berço de seios
deposta a sereia sem volteios
surdo e quem sabe cego
do inútil resfolego a busca
do sumo absoluto do acaso
ser dois em um ou vulto
de papier machê no esforço
de sobrenadar o poço o açude
à descoberta do fundo
palha de milho ou alcatifa
De que valeu dizer ou não dizer
ouvir não entender
enxergar e não crer?

A medida é o dedal
onde brindar a fala o ouvido
a vista
e cair na real.

 

Adeus

É assim que eu te digo adeus:
como uma menina que mora na beira
da estrada e abana a mão para o trem.

Apenas te vi.
E te digo adeus porque não
apanho rosas.

 

Footing

Quem dá mais
por um corpo valendo
15 16 17 18 19
20 anos?

Quem dá mais
por uma carne intacta
com todos os seus pertences?

Nesse pregão
ninguém paga o preço
de uma aliança.

 

.

Nenhuma casa é segura

Mural de Nemesio Antunez

Alejandro Zambra

É fácil se apaixonar por Zambra. É fácil ler todos os romances de Zambra e se apaixonar por Zambra. É fácil ler os romances de Zambra porque: 1) a linguagem é estupidamente simples; 2) são curtos, muito curtos; 3) são de uma leveza narrativa incrível; 4) têm sido editados, aqui no Brasil, desde 2012, em belos volumes pela Cosac Naify. Formas de voltar para casa, o maior até agora (160 pp.), dá continuidade ao projeto de edição brasileira das obras do chileno, depois de Bonsai e A vida privada das árvores, e a editora já divulgou que publicará em breve o livro de contos/novelas Meus documentos. As edições não trazem nenhuma fotografia de Zambra, mas é fácil de encontrar no Google, imprimir, emoldurar e colocar do lado da cama.

Formas de voltar para casa lida com os desafios de se voltar para casa, a construção e não somente, de todas as formas que isso vai se apresentando aos personagens do livro, de todas as formas que isso se apresenta a nós. Voltamos ao terremoto de 13 de março de 1985, mas também às tensões da ditadura no Chile, em uma narrativa ágil, como a dos primeiros livros. A questão nem é quem fica ou não do lado de Pinochet, mas a inocência e a culpa de quem ignora essas questões. Raúl, o homem solitário da vila, que se esconde por trás de uma identidade que não a sua, é apenas um ponto de encontro entre o narrador e Claudia, que precisa voltar, anos depois, para que o romance funcione. “É mais fácil entender assim. É melhor pensar que tudo isso foi uma história de amor”, mas os romances de Zambra nunca são uma história de amor. Quer dizer, todos precisam de uma história de amor porque, no fim, são sempre sobre a perda. Os romances de Zambra, e Formas de voltar para casa principalmente, são construídos através do desejo.

Em dois planos o narrador-personagem desenvolve a narrativa e mostra a fratura dessa construção: “Voltei ao romance. Ensaio mudanças. Da primeira para a terceira pessoa, da terceira para a primeira, até para a segunda”. O livro, que é sobre os pais, mas também sobre Eme, é em tudo sobre o escritor. Para escrever sobre Eme, a ex-mulher, é preciso reabitar a casa, em uma tentativa de reconciliação que nunca será possível, como a prosa não é possível e se torna ritmos, cadências:

É melhor não sair em nenhum livro
As frases que não nos queiram abrigar
Uma vida sem música e sem letra
E um céu sem essas nuvens que agora
Você não sabe se estão indo ou vindo
Essas nuvens quando mudam tantas vezes
De forma que ainda parecemos estar
Morando no lugar que abandonamos
Quando ainda não sabíamos os nomes
das árvores
Quando ainda não sabíamos os nomes
dos pássaros
Quando o medo era o medo e não existia
O amor pelo medo
Nem o medo pelo medo
E a dor era um livro interminável
Que um dia folheamos só para ver
Se no final apareciam nossos nomes.

É preciso, antes de tudo, sair da casa. E uma vez é por todas. É preciso retornar, depois de algum tempo, porque estamos sempre voltando pra casa, e confrontar a literatura dos pais com a literatura dos filhos. Uma hora é preciso, agora sim, saber se os pais apoiavam ou não Pinochet, mesmo que a ditadura não seja sua, mesmo que você nem tivesse nascido. Os anos 70 e 80 chilenos constantemente são recuperados na prosa dos contemporâneos e com Zambra acontece de maneira sutil e profunda. A ditadura acompanha cada movimento do livro, mesmo que disfarçada, ou discutida em voz baixa (sempre discutida em voz baixa) enquanto o pai dorme e mãe e filho fumam na sala. É preciso sermos todos personagens secundários.

Visitar a casa do passado não é voltar ao passado – é bom que não nos enganemos, mas é para isso que servem os álbuns de fotografia, “para nos fazer acreditar que fomos felizes quando crianças. Para nos demonstrar que não queremos aceitar o quanto fomos felizes”. Formas de voltar para casa não é um livro sobre a casa, tampouco sobre a ditadura. Pode ser que nos engane e alguns pensem que é uma espécie de ensaio autobiográfico que culmina na construção de um romance, construção tal esmiuçada nas partes 2 e 4 do livro, mas não. Acredito que, muito mais que as revoluções e as tensões entre o voltar e o estar, mais do que as tentativas de um corpo de habitar e ser habitado por uma casa, é um livro sobre o sossego, deste que existe quando não há mais retorno. O livro de Zambra é um ensaio contundente sobre amadurecer e não caber mais nas roupas dos pais. Pode ser que as revoluções, como diz um poema da Matilde Campilho, sejam mesmo o lugar certo para a descoberta do sossego: “talvez porque nenhuma casa é segura / talvez porque nenhum corpo é seguro / ou talvez porque depois de encarar uma arma / finalmente seja possível entender / as múltiplas possibilidades de uma arma”.

X

Formas-de-voltar-para-casa_capa2

 

 

 

 

 

 

 

Formas de voltar para casa
Alejandro Zambra
Cosac Naify
160 páginas

.

(Publicado originalmente na edição #01 da revista OGaribaldi)

Poemas de Alice Sant’Anna

Foto de Alexandre Sant'Anna

Foto de Alexandre Sant’Anna

Alice Sant’Anna nasceu em 1988 no Rio de Janeiro. Em 2008, publicou seu primeiro livro de poesia, Dobradura (7 Letras). Em 2012, lançou, em parceria com Armando Freitas Filho, a plaquete independente Pingue-Pongue. Seu livro Rabo de baleia (Cosac Naify) recebeu o prêmio APCA de título de poesia de 2013. Em dezembro de 2014, lançou outra plaquete, “Ilha da decepção”, com fotografias de seu pai, Alexandre Sant’Anna. Abaixo, três poemas novos.

*

 e um dia as formigas despencaram
da árvore como se estivessem maduras
uma chuva de formigas
e achamos que aquilo era tão especial
que merecia ser comemorado
na frigideira com manteiga
as saúvas crocantes
comprei um perfume só porque
se chamava água pura
e a graça era pagar caro
por um frasco de vidro
escrito em linhas finas água pura
ficamos em silêncio no telefone
ele perguntou qual era a palavra
eu não sabia qual era a palavra
por isso demorei cinco dias para responder
falei de longas caminhadas pela cidade
não contei que na calçada havia uma fruta
sem casca toda mordida por formigas
uma pêra um banquete
não disse que o som é uma frequência
que na inércia viaja de um lado
para o outro e rebate e pode
perder a força
mas não morre nunca
ainda não sei bem o que isso quer dizer
tudo o que falamos fica pra sempre
fluindo no ar como água?
(como é o cheiro da água pura?)
talvez o som volte mais tarde
e nos pegue de surpresa?
o amigo dela é obcecado pelo movimento
das formigas, o movimento
que olhando de fora parece
assustado ou aleatório mas que nos bandos
internamente faz sentido
e dentro do apartamento por causa do vale
às vezes se escuta uma pessoa falando lá de longe
em casa do outro lado do morro
uma frase baixinha um sussurro
de um vizinho distante
ficamos quietos por tempo demais
com medo de dizer a coisa errada
no telefone não tinha como saber
se você me olhava nos olhos

*

ilhas diomedes

falamos sobre o percurso até o fracasso
ou sobre como falar em fracasso talvez
já seja um passo adiante
um passo adiante do fracasso
o passo não sei bem em que direção
lá perto do polo norte
você sabia que tem duas ilhas
uma grande e uma pequena
as ilhas diomedes ou as ilhas do amanhã
separadas pela linha que corta o fuso
a linha que divide o ontem do hoje
numa distância de apenas um quilômetro
conversávamos perto de uma palmeira
iluminada por baixo que cobria
uma constelação, o céu estranhamente claro
porque choveu nos últimos dias e agora
lá está saturno, como você sabe
que é saturno? só sei reconhecer
as três marias e mesmo assim
depois tentei fingir que não ouvia
o tiroteio do outro lado da montanha
tiros ou fogos como dizer a diferença
pensei em fechar a janela mas mudei de ideia
e no lugar escancarei o vidro
o vidro não suavizaria o baque
como por exemplo estar de óculos num acidente
os óculos protegeriam os olhos
ou pelo contrário os estilhaços
da lente entrariam na retina? o que dói menos?
o cinto de segurança como uma marca
para sempre cruzando o peito
uma faixa de miss ou de presidente
o dedo gira na borda do copo
um pingo no vestido
vinte e três horas separadas por uma linha
onde quem sabe algum dia
talvez construam uma ponte
um túnel um ferryboat
um trem um voo uma ciclovia
uma avenida uma estrada um voo
um balão um bom par de tênis já servia

*

baixo gávea

você está mais magra
a qualquer momento o cordão
vai arrebentar de tão velho
se alguém puxasse mesmo
que de leve já era
mas ela sempre foi magra
ficamos marcados para sábado
ninguém me chamou? não é isso
daquela vez também
ninguém me convidou para o café
não li a segunda parte, mas a primeira
me fez mal fisicamente falando
não posso andar com vocês
não tenho pós-graduação
pra citar deleuze, falar em epistemologia etc.
mas vocês já se separaram?
a menina vem pra cá nesse fim de semana
no fundo não estou assim tão a fim
você está com uma cara
parece que alguém que você queria
que viesse não veio
apareceu tanta gente
e é sempre assim
a gente só lembra de quem não veio
você que está sumida
não te vejo faz quantos meses
essa viagem não te fez bem, está magra demais
e por que não deu certo? achei que fosse
durar, todo mundo achou
então marcamos sábado
ou domingo não lembro
trabalho perto de você, vamos combinar
a gente sempre aprende
alguma coisa qualquer coisa
no carnaval duzentas mil pessoas no aterro
ela disse que queria ficar só comigo
eu e ela e eu
falei que aquilo não tinha como
em pleno carnaval aquela gente toda
bateu uma saudade
não bolei nenhum plano b
mas fica bem, você está bem?
vou comemorar amanhã com a minha mãe
talvez alguma coisa na minha casa
você tem que conhecer minha casa
minha casa já está com cara de casa

*

O milagre da poesia juizforana

Anelise Freitas entrevista Iacyr Anderson Freitas

Iacyr Anderson Freitas salienta “que Juiz de Fora tem uma tradição poética vigorosa”, pra logo em seguida completar, afirmando como essa tradição se pautou em “um verdadeiro milagre”, já que “efetivamente esse patrimônio” nunca foi reconhecido. O poeta nasceu em Patrocínio do Muriaé (MG) em 1963. Entre seus livros publicados encontramos poesia, ensaio e contos. Já concorreu a vários prêmios literários de importância nacional e no exterior; sua obra também foi traduzida para diversas línguas. Seu último livro, Ar de Arestas (Escrituras; Funalfa, 2013), figurou entre os vinte e dois livros mais votados do ano no Portugal Telecom, um dos maiores prêmios de literatura em língua portuguesa. O poeta repetiu o feito de 2008, quando Quaradouro (Nankin Editorial; Funalfa, 2007) ficou entre os doze títulos mais votados no mesmo prêmio.

O escritor também falou a Um Conto sobre a poesia feita em Juiz de Fora, durante os anos 80, quando publicações como o folheto Abre Alas e a revista D´Lira agitavam a cena poética da cidade (poética no sentindo mais amplo, pois coabitavam artistas variados). Com o mesmo carinho do poeta Iacyr Anderson Freitas convido vocês a lerem a entrevista que segue abaixo:

DSC_6864 PB

Quando falamos sobre a geração de poetas dos anos 80 (principalmente no que tange ao folheto Abre Alas e à revista D´Lira), em Juiz de Fora, seu nome é constantemente lembrado. Entretanto, em outra entrevista, você alega não saber “tecer qualquer comentário equilibrado sobre o que se passou na cidade naquele período”. Portanto, mesmo que de maneira desequilibrada, gostaria de saber como você define a sua participação naquele momento marcante para a poesia local.

Eu não consigo definir minha participação naquele momento. Aliás, creio que a vida é mesmo infensa a definições. Como sempre digo nos cursos que ministro, matamos o que definimos. Talvez felizmente. Retomando o fio da meada: participei dos conselhos editoriais da revista d’lira e do folheto abre alas, mas confesso que não tive como me dedicar muito às tarefas de edição. Perto dos trabalhos desenvolvidos pelo Zé Santos e pelo Mutum (o falecido José Henrique da Cruz), por exemplo, a minha contribuição efetiva era uma equação cujo resultado tendia a zero. Na época, eu cursava Engenharia Civil na UFJF, tendo aulas de segunda a sábado, as mais das vezes das sete da matina às seis da tarde. Durante um bom tempo fui Diretor de Cultura do DCE e me dediquei, ainda, à militância estudantil. A ditadura militar estava nos estertores – como o próprio país, aliás – e ninguém imaginava como a situação política brasileira poderia superar, sem sequelas, quase vinte anos de repressão e descalabro. De quebra, eu lutava muito, financeiramente falando, para me manter em Juiz de Fora, pois meus pais não tinham recursos e a carga horária da UFJF não me permitia trabalhar. Passando esse período a limpo, mais de trinta anos depois, vejo que tudo ali foi muito fértil e rico, mas também muito difícil. Por conta de todas essas dificuldades, minha participação naquele momento em Juiz de Fora, seja como poeta ou editor, foi muito modesta. Continuar lendo