Como fazer (ou não) uma solidão povoada

Anderson Pires entrevista André Monteiro

 

Definir o que é poesia contemporânea ou mesmo delimitar um cenário poético é tarefa um tanto arriscada e (sem dúvida) perigosa. No entanto, é inquestionável que o cenário atual e toda sua diversidade de poesia vem crescendo cada dia mais, vide o número de novas editoras que são criadas e poetas inéditos recentemente publicados. Não é o caso de André Monteiro, que publicou seu primeiro livro (Ossos do ócio) em 2001 e, desde então, possui uma produção poética editada constantemente (seja no meio físico ou virtual). Apesar de dizer que não se encaixa em nenhuma “cena poética”, Monteiro é figura constante, principalmente no cenário juizforano, há algum tempo, dialogando – seja no meio acadêmico, seja nos copos de cerveja, ou nas discussões políticas e poéticas – com poetas e artistas diversos da região Sua mais recente publicação Cheguei atrasado no campeonato de suicídio (Aquela Editora) foi lançada em junho desse ano, e reúne trabalhos de 1990 a 2013.

Pensando nesse cenário inconstante, mas existente, convidamos Anderson Pires da Silva, autor de Trovadores elétricos (Aquela Editora, 2013) e amigo e agora colega de trabalho de André, para conduzir uma entrevista com o poeta – remontando uma pareceria que existe há décadas, dentro e fora do mercado editorial (em 2006, por exemplo, os dois publicaram na antologia Livro de sete faces, editado pela Funalfa Edições e pela Nankin Editorial). Nessa conversa, que poderia ter acontecido em uma mesa de bar ou em uma sala de aula, Monteiro fala sobre a cena poética de Juiz de Fora, sobre seu trabalho solitário (mas povoado), além de suas produções recentes e, é claro, sobre o elogio à anáfora no seu novo livro. Confere aí.

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Fotografía de Stephan Rangel

Olá, André! Como vai? Antes de conversar sobre seu último livro, não posso deixar de lembrar o quanto foi divertido e rock’n roll o lançamento do Cheguei atrasado no campeonato de suicídio. Por causa disso, queria saber qual a sua análise da atual cena poética em Juiz de Fora e como você se encaixa nela?

Nos últimos anos, há muitos poetas, de gerações e filiações distintas, exibindo seus trabalhos em Juiz de Fora. Não apenas através de livros, mas também via blogs, redes sociais e “microfones abertos”. Penso que o surgimento do Eco, do qual tive a alegria de participar algumas vezes, inclusive de sua primeira edição, contribuiu, em grande parte, para essa espécie de boom da poesia em nossa cidade, seja abrindo espaço para que muitos “engavetados”, para lembrar Sérgio Sampaio, pudessem colocar sua poesia na calçada, seja estimulando encontros e reencontros (nem sempre pacíficos, o que é saudável) de poetas de tempos e lugares distintos. Acho que a cena poética de Juiz de Fora é, hoje, tão vasta e tão diversificada que é difícil analisá-la como um todo, ou reduzi-la a um denominador comum.

Talvez essa minha dificuldade de definir uma cena tenha a ver com o meu não pertencimento a qualquer espécie de grupo sistêmico, ou movimento orgânico de poesia. Se eu fosse filiado a algum clube de poesia, pode ser que, “naturalmente”, eu pudesse, a partir de referências prévias, descrever uma cena, apontar nomes, etc. Aliás, nem sei se há algo realmente orgânico – pelo menos, no sentido mais fechado do termo – na atual poesia de Juiz de Fora. Só posso dizer que comigo não tem sido assim. Tenho feito um trabalho muito solitário nos últimos tempos, o que não significa que tenha me tornado antissocial, monológico, ou personalista. Pelo menos, não é assim que eu vejo essa minha solidão. Gostaria de pensar que ela está mais para uma espécie de “solidão povoada”, como gostava de dizer Deleuze em relação a Godard, do que para uma solidão do tipo romântico, umbilical e suicida. O recente lançamento da minha antologia poética, Cheguei atrasado no campeonato de suicídio, que você mencionou na sua pergunta, talvez encarne um pouco essa ideia, pois embora tenha sido um acontecimento muito meu, muito assinado pelo meu nome, foi também um acontecimento muito nosso, feito com a cooperação explícita e implícita de muita gente, inclusive do meu atual entrevistador, o meu velho companheiro de guerra Anderson Pires. Foi um lançamento muito atravessado pela presença, não só de muitos poetas da palavra, mas também de fazedores de coisas e inventores de modas de outras searas (da música, da performance, do vídeo e de atividades vitais inclassificáveis…) provenientes de diversos cantos e encantos da cidade. Foi mesmo um lançamento muito rock`n roll, como você disse. De algum modo, todos os que estavam comigo no lançamento, que me ajudaram a lançar esse livro, estavam e estão me dizendo, com muita generosidade, que, paradoxalmente, eu não estou sozinho em minha solidão.

Por um lado, minha solidão é tática de ovelha desgarrada, é tentativa de dar um jeitinho de escapar, de resistir à doxa, de resistir ao bom senso e ao bom gosto dos pactos coletivos de obediência à suposta pica grande dos ditos gurus e suas igrejinhas e escolinhas fascistas. Por outro lado, é desejo de me entregar ao não esperado, ao não esperável da comunhão com o outro. Desejo de desalojar o “eu” e o “você” e abri-los para um terceiro sempre inacabado. Um terceiro-outro, singular e plural, que não fala por mim, não fala por você, não fala por ninguém e, ao mesmo tempo, fala com tudo o que em nós, entre nós, entre muitos nós, ainda não tem palavra, ainda está por vir e por ser.

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Ou sim: música, poesia e outras esquinas

Essa minha vontade de solidão tem sido fomentada, em grande parte, pela minha participação, nos últimos anos, no grupo poético-musical Ou sim: música, poesia e outras esquinas que, no momento, diga-se de passagem, está finalizando seu CD com o apoio da Lei Murilo Mendes. Tal afirmação pode soar, de muitos modos, contraditória, já que, anteriormente, eu havia dito que não pertenço a qualquer espécie de grupo sistêmico, ou movimento orgânico de poesia. Sem querer me redimir de possíveis contradições, pois, como diria Mário de Andrade, às vezes é necessário que um homem se dê ao direito de se lançar com elas, é necessário dizer, primeiramente, que o Ou sim não é um grupo poético em um sentido estrito, mas, é um grupo que, tendo a música como motor principal, busca, para além dos seus limites estritos, experimentá-la em diálogo com a poesia lida e falada, a performance cênica e a performance visual. Em segundo lugar (e isso é o mais importante a ser dito aqui), o Ou sim não é grupo que se pretende filiado, a priori, a nenhuma cartilha ou gênero poético-musical específico. Por isso, talvez, ele seja, antes de tudo, um encontro de compositores e poetas experimentando, com radicalidade, para voltarmos ao termo de Deleuze, suas “singularidades povoadas”. É claro que Ou sim é marcado por diversas referências literárias e musicais, como o Tropicalismo, o Pós-tropicalismo, o Clube da Esquina, a Poesia Marginal, a Literatura Beat, a Literatura Modernista brasileira, o Rock internacional dos anos 60 e 70, a Vanguarda Paulista dos anos 80 e o movimento Punk, mas não se prende a essas referências. De outro modo, procura abrir os limites de seus rótulos, fazendo delas estímulos vitais para novas pesquisas estéticas e existenciais de cada membro do grupo…

Sempre fui propenso a devorar muitos tipos de livros, discos, filmes e gentes, mas nunca curti obedecê-los e, muito menos, criar obediência alheia através deles, através de suas referências. Será que estou sendo otimista demais com minha desejada solidão povoada? (Risos…) É claro que já devo ter escorregado, já devo ter me agarrado à lógica catequética e culpada, presente na pedagogia geral (não apenas na pedagogia poética) dessa nossa sociedade que aprendemos a chamar de ocidental. Uma pedagogia dualista que nos ensinou que o mundo é um campus de concentração separado em dois polos: de um lado, o segmento dos sábios mestres gurus. De outro, o dos ignorantes discípulos guris. De um lado, os que se culpam por que estão por fora e, ajoelhados, vão pedir perdão aos poetas aureolados de plantão (sejam eles lidos como benditos, malditos, benditos malditos, ou malditos benditos…). De outro, os líderes carismáticos que estão por dentro e se sentem no direito de culpar e desculpar quem entra e quem sai do cercadinho.

Com certeza, infelizmente, não posso me dar ao luxo de dizer que não fui, não sou e nunca serei capturado por essa pedagogia. Afinal, não fui, não sou e nunca serei nenhum super-homem capaz de me livrar completamente dos vícios opressores da nossa cultura. E não é porque li algumas páginas de Nietzsche que posso sair por aí todo bobo, voando eternamente livre para além de todo bem e todo mal. Não é assim que funciona. Trair uma cultura não é mole não, até porque, ela tá entranhada no caldo dos nossos desejos mais transgressivos. Driblar a doxa é uma luta diária. É se reinventar todo dia. Viver, não apenas escrever, a poesia de todo dia, como diria o Cacaso. Seja como for, tenho buscado aprender a esperar pelo outro sem nada esperar do outro. Desejo, cada vez mais, passear por esquinas sem clube e, cada vez menos, por clubes da esquina, conforme já eu disse em um texto presente na supracitada antologia. Às vezes, me atropelo, ou sou atropelado, e, mais uma vez, me vejo capturado. Aí, é sempre a hora de descobrir, de novo, os buraquinhos do muro e ampliá-los… É assim que funciona…

Pra concluir, e desdobrando a segunda parte da sua pergunta, acho que eu não me encaixo, ou não gostaria de me encaixar, em nenhuma “atual cena poética” de Juiz de Fora. Eu, simplesmente, gostaria de ser visto como alguém que faz parte dela às vezes. Eu entro e saio de cena, ou melhor, de cenas sem pertencer ao território fixo de nenhuma delas. Embora, muitas vezes, eu me encontre mesmo é errando, errado e errante pelas frestas e festas das obscenas. Mas isso já é outra história…

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Há uma grande diversidade formal no livro, cada seção é escrita de uma forma diferente, mas ao mesmo tempo há uma constante temática nos poemas – a afirmação da vida. Como você relaciona essas duas condições da poesia, como estado de linguagem e como estado de existência?

Sim, Anderson. Cada uma das cinco seções de “Cheguei atrasado no campeonato de suicídio” apresenta, realmente, uma dicção muito singular, até porque os poemas presentes nessa antologia foram extraídos de épocas e circunstâncias distintas da minha trajetória. Alguns foram retirados do livro Ossos do Ócio, minha primeira antologia, publicada em 2001 pela editora paulista Cone Sul, contendo parte de minha produção dos anos 90. Outros foram publicados em revistas, jornais e redes sociais entre 2002 e 2013. Há ainda aqueles que foram escritos especialmente para o já citado grupo poético-musical Ou sim. Além disso, os poemas presentes no livro incorporam uma grande diversidade de gêneros poéticos, dialogando com diversas tradições poéticas e culturais. Percorrendo as cinco seções do livro, nele podemos encontrar ressonâncias que vão da poesia modernista dos anos 20 ao rap, da poesia concreta ao rock and roll, do tom despojado da poesia marginal dos anos 70 à releitura de temas e questões da filosofia e da literatura clássicas, da fala cotidiana ao jargão acadêmico e ensaístico… No entanto, como você já observou, há algo comum entre os poemas que é esse gesto de afirmação da vida, o que se dá justamente, agora já começando a desdobrar o cerne da sua pergunta, através de uma tentativa de entrelaçar a vida e a linguagem, ou o que você chamou de “estado de existência” e “estado de linguagem”.

Busco produzir com a linguagem uma relação experimental, levando-se em conta a raiz grega da palavra que, vinda de “ex” (movimento para fora) e “peras” (limite), pode ser entendida como uma propensão a sair dos limites, ou ampliar limites. Nesse caso, os limites que busco ampliar e extrapolar são os limites da própria linguagem, já que procuro pesquisar os contornos visíveis, audíveis e inteligíveis da palavra (suas dimensões semânticas, sintáticas, sonoras e imagéticas, ou aquilo que os concretos chamariam de “verbivocovisualidade”) justamente para liberar, nas fissuras desses limites, a força de um fluxo ilimitado de sensações vitais, aquele que escapa a toda e qualquer representação linguística. O que desejo é “trapacear a língua”, para lembrar uma expressão famosa de Barthes, não para representar a vida na palavra, mas para experimentar a dimensão irrepresentável da vida na palavra. “Só o irrepresentável se apresenta”, lê-se em um dos poemas da antologia.

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O poeta e a obra

Mas essa minha procura por experimentar a palavra não deve ser compreendida como algo esteticista. É antes uma atitude de resistência política que, em nada, se confunde com a política institucional ou com o sentido tradicional de engajamento político, aquele interessado em instrumentalizar a linguagem, em utilizá-la “em nome de” alguma ideia ou causa social predefinida. De outro modo, posso dizer que é justamente por tentar se abrir à dimensão irrepresentável e silenciosa da vida na palavra que o meu trabalho também busca se abrir à política. É o que fica claro nos últimos versos de “Como fazer (ou não) um poema profundamente político?”, poema-manifesto que abre o livro: “um poema profundamente político/ é um poema que grita no rasgo escuro das gentes/ e o grito mais alto de um poema político/ é a mais bela e a mais profunda e justa música de seu silêncio”. Tal como o próprio título sugere, Cheguei atrasado no campeonato de suicídio é um livro que luta contra a morte, que deseja resistir ao suicídio da linguagem e da vida, buscando liberá-las para além da camisa de força de suas representações já convencionadas e estereotipadas. Chegar atrasado no campeonato de suicídio é, de muitas formas, se educar para esperar, na palavra, o acontecimento, sempre inesperado, da vida.

Só pra esclarecer, quando digo que busco criar uma relação experimental com a palavra e, com ela, uma política vitalista, não estou dizendo que, necessariamente, eu alcanço tudo isso. Se o corpo efetivo e afetivo do leitor da minha poesia não entrar na dança da minha palavra, todo esse papo pode se tornar um grande papo furado. Ou não?

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Para terminar, uma perguntinha retórica: qual é a importância da anáfora para construção dos seus poemas? Valeu.  

Uma importância enorme, já que muitos textos que escrevo são, obviamente, embalados por estruturas anafóricas. Se não houvesse anáfora nesse mundo, talvez eu não pudesse escrever nem um quarto das coisas que escrevo. A anáfora e eu, como diria o bom e velho (sempre novo) Espinosa, produzimos um encontro de sensações alegres porque nós (ela e eu), ao que parece, aumentamos, reciprocamente, e constantemente, a nossa potência de agir. Não sei bem o porquê dessa transa amorosa entre nós. Não sei o que eu vi nela. Nem o que ela viu em mim. Só sei que quando a gente se encontra, a gente se torna capaz de se repetir sem se repetir. A anáfora é uma amante que parece ser sempre a mesma, quando, na verdade, é sempre a outra. Sem dúvida, posso dizer, voltando mais uma vez ao Barthes, que a anáfora me tem sido uma excelente companhia para “trapacear” o “fascismo da língua”…

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Fotografía de Stephan Rangel

Leia aqui alguns poemas de André Monteiro.

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